desarmar decentes aumenta criminalidade

PARECER JURÍDICO

SOBRE A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO EM FACE DO REFERENDO DA PROIBIÇÃO DE COMERCIALIZAÇÃO DE ARMAS DE FOGO E MUNIÇÕES NO TERRITÓRIO NACIONAL


PREÂMBULO


“Se o homem honesto deve abandonar tudo o que possui pela Paz, em prol daquele que colocará suas mãos violentas sobre seus bens e sobre os que lhe são caros, eu quero que seja considerado que tipo de paz haverá no mundo, que deve ser mantida apenas em benefício dos ladrões, bandidos e opressores. Quem não estranharia o tratado de paz, que os poderosos estabelecem com os humildes, quando o cordeiro, sem resistência, oferece sua garganta ao lobo imperioso para que este a dilacere?” (LOCKE, John. Segundo Tratado sobre Governo Civil. 1680.)

          Este Parecer subscreve um consenso, hoje nacional, de que os níveis de violência criminal no Brasil são intoleráveis e configuram um clima geral de efetiva insegurança pública. A cidadania brasileira vem sendo vitimada por homicídios, em patamares semelhantes, senão mais elevados aos das mortes civis e baixas militares, em países que vivenciaram ou vivenciam, nessa passagem de século, teatros de guerra, ou que foram ou são alvos de agressão terrorista ou palcos de insurgência civil crônica. Tal condição da nossa convivência social demanda atenção prioritária do Estado e exige resposta saneadora da política pública.
         
Não discordamos, portanto, como parte do processo de contenção da criminalidade, no Brasil e no mundo, da necessidade do registro de propriedade e do controle governamental sobre a comercialização e o porte de armas de fogo. Consideramos, também, que a redução do estoque bruto de armas em circulação, através de iniciativas como a campanha pelo desarmamento voluntário, que já recolheu 443 mil armas neste país[1], poderá, grosso modo, reduzir o risco de acidentes e de mau uso eventual. E reconhecemos o desarmamento geral e a paz como valores e metas da convivência humana civilizada.[2] 
         
Queremos enfatizar, entretanto, que a população civil do Brasil vivencia, neste tempo, uma condição de guerra em face da criminalidade, e em circunstâncias tais, que os poderes da República Federativa do Brasil não conseguem garantir a incolumidade e a sobrevivência dos seus nacionais, onde quer que se realizem os combates, neste conflito.
“A cada 12 minutos, uma pessoa é assassinada no Brasil. Por ano, são registrados 45 mil homicídios no País. A afirmação foi feita pelo coordenador-residente da ONU no Brasil, Carlos Lopes, em audiência pública ocorrida nesta terça-feira, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Ele confirmou os termos do artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 6/11/03 em que afirma que a prática de assassinatos e execuções sumárias tem uma dimensão preocupante no País. "A probabilidade de um assassino ser condenado e cumprir pena até o fim no Brasil é de apenas 1%", informou. Carlos Lopes afirmou também que o Brasil tem cerca de 3% da população mundial e registra 12% dos homicídios que acontecem no planeta. (...) O coordenador da ONU também comparou o desempenho da polícia carioca com o da norte-americana. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, 70% dos casos de homicídios são arquivados em razão da qualidade da investigação. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o mesmo percentual é efetivamente esclarecido.” (Agência Câmara, “Brasil é campeão mundial em homicídios: 45 mil/ano”. Reportagem: Allan Pimentel. Edição: Ana Felícia, 2 de dezembro, 2003.)

Temos profunda convicção que, desarmar um dos lados deste conflito aberto – no caso, os cidadãos honestos –, sem que se assegure o efetivo controle da capacidade ofensiva da criminalidade, exercitada com elevado e comprovado índice de letalidade e impunidade na sociedade brasileira, só se concebe como um ato de poder absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito e de conseqüência potencialmente genocida.

          Isso posto, a proibição da venda de armas e munições à população civil não criminosa no Brasil, deve ser interpretada, nos exatos termos da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, da Organização das Nações Unidas, firmada em 1948, a qual proscreve qualquer política que implique em submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física, total ou parcial(Resolução 260 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, 9 de dezembro de 1948, Art. II, adotado também pelo art. 6 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovado em 17 de julho de 1998, pela Comissão de Plenipotenciários das Nações Unidas sobre o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional).

          Incide, obviamente, nesta proscrição, o conteúdo normativo do referendo previsto para realizar-se no dia 23 de outubro vindouro. Prevê, a consulta referendária, que a população se manifeste aprovando ou não o art. 35 e seus parágrafos, do Estatuto do Desarmamento, o qual dispõe: verbis –
“Lei 10.826/2003. Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6 desta Lei.
§ 1º. Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
§ 2º. Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação do seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral.”

É evidente, o impacto dessa medida insana, na deterioração das condições de sobrevivência das pessoas não-criminosas em nossa sociedade, individualmente consideradas ou em grupo, nas famílias ou nas empresas, que estão sendo vitimadas pela violência, tanto organizada quanto inorgânica, mas de qualquer forma disseminada. Ao inviabilizar a legítima defesa da população civil, essa proibição legislativa a deixa inerme frente aos elevados índices de criminalidade, que nos situam no topo das estatísticas internacionais de homicídios.

Na conseqüência jurídica previsível, tão logo consumada a pretendida proibição referendária, a obrigação da segurança pública, até então subsidiariamente atribuída ao Estado brasileiro, eis que “direito e responsabilidade de todos”, nos termos do art. 144, caput, da Constituição Federal, passará a lhe incumbir em caráter exclusivo. Desde logo, portanto, as mortes efetuadas, entre a população civil, pela criminalidade armada, além de passar a contar-se no rol das vítimas internacionais de genocídio, serão imputadas à responsabilidade civil e penal do Estado brasileiro. Igual responsabilidade será imputável pelos danos morais ou patrimoniais que resultarem de agressão criminosa. Haverá fundamento jurídico, para a respectiva indenização aos familiares, e legitimação, a qualquer do povo, para suscitar a denunciação dos responsáveis – seja pela aprovação, seja pela convocação, seja pela autorização, seja pela realização do referendo em análise e do respectivo conteúdo normativo – perante os Tribunais pátrios e as Cortes Internacionais de Justiça.

São gravíssimas as conseqüências, institucional e histórica, do que se pretende consumar pelo referendo de 23 de outubro de 2005. Tão graves que, se dela tivessem a efetiva consciência e clareza, a maioria dos parlamentares que aprovaram o art. 35 do Estatuto do Desarmamento e a autorização do referendo, têm-se por certo, haveriam recuado dessa decisão.

Como os nossos legisladores não tiveram esse descortino, incumbe-lhes a reparação dos seus equívocos pela recusa de apoio à sua consumação. Quanto aos legitimados sujeitos do direito de argüição para a defesa da Constituição descumprida, cabe-lhes promover a respectiva impugnação na esfera do controle concentrado de constitucionalidade. E, à mais alta Magistratura da República, postula-se o dever indeclinável da Jurisdição para a tempestiva salvaguarda dos direitos fundamentais e das instituições da democracia.


PRELIMINARES DE FORMA

DO CABIMENTO DA ARGUIÇÃO DO §1º DO ART. 102 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA A PREVENÇÃO E REPARAÇÃO DE LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL, RESULTANTE DOS ATOS DO PODER PÚBLICO QUE DETERMINAM A REALIZAÇÃO DE REFERENDO POPULAR EM 23 DE OUTUBRO DE 2005

Em seguida à conferência de Hans Kelsen, proferida há mais de setenta anos, em que o jurista notável propugnou pela criação de Tribunais Constitucionais, a fim de realizar a jurisdição constitucional, tendo em vista que o ordenamento jurídico configura-se “como uma pirâmide hierárquica de normas, garantindo-se a hierarquia normativa pelo controle da conformidade de normas de grau inferior com as determinantes normativas de grau superior”, seguiu-se, em 1929, o famoso debate que Kelsen travou com Carl Schmitt, em que Kelsen sustentou que a guarda da Constituição deveria ser deferida a um Tribunal Constitucional, que apreciaria as questões jurídico-constitucionais, realizando a supremacia da Constituição.
 É que esta é pressuposto de validade e de eficácia de toda a ordem normativa instituída pelo Estado e “uma Constituição, na qual não existia a garantia de anulabilidade dos atos inconstitucionais não é plenamente obrigatória em sentido técnico. Carl Schmitt, a seu turno, recusava a idéia da instituição de uma jurisdição constitucional, porque a decisão que resolve a questão de constitucionalidade teria natureza política. Não caberia, então, a um Tribunal “fazer política”, na defesa da constituição. Essa caberia, sim, a um órgão político.
Essas duas posições exprimem, leciona Cardoso da Costa, “duas concepções diferentes de Constituição, ou do seu momento essencial e verdadeiramente radical (a uma concepção `normativista` de Constituição, como era a de Kelsen, contrapunha-se uma sua concepção `decisionista-unitária`, como era de Schmitt), e, conseqüentemente, do que deva ser a sua `defesa` ou a sua `guarda`; como nela se exprimem, também, entendimentos diversos acerca da natureza da `justiça` ou da função jurisdicional”.
Do debate, saiu vitorioso Hans Kelsen. Pode-se afirmar, aliás, que Kelsen iniciou e pôs fim à polêmica. Sua conferência representou, felizmente, o alfa e o ômega da questão.” (VELLOSO, Carlos Mário: A ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. In, Revista Diálogo Jurídico, Número 12 – março de 2002 – Salvador – Bahia – Brasil.)


I – DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL E SUA PERTINÊNCIA AO TRATAMENTO PROCESSUAL DO CASO CONCRETO

          Ao versar sobre o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no quadro da controvérsia constitucional vencida por Hans Kelsen, sobre a necessidade e as funções de um Tribunal Constitucional, Sua Excelência o Ministro Carlos Mário Velloso, consagrou a competência indeclinável do STF no controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público, até mesmo os de natureza intrinsecamente política, e a função precípua, que passou a ser exercida pela argüição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF, no sistema pátrio de defesa dos direitos fundamentais e da Constituição, forte na redação da Carta de 1988 - CF: verbis
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...)
§1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

          A matéria processual foi regulada pela Lei 9.882/1999, fixando-se, o objeto e a causa de pedir desta argüição, no que dispõe o seu art. 1º, caput (argüição autônoma) e o respectivo parágrafo único, inciso I (argüição incidental): verbis –
“Art. 1º. A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;”  (Lei nº 9.882 de 3 de dezembro de 1999).

Ficam assim tecnicamente determinados:
a] Como objeto de argüição autônoma, genericamente, os atos do Poder Público, e como causa de pedir, a prevenção ou reparação de lesão a preceito fundamental, deles resultante; e,
[b] Como objeto de argüição incidental, a controvérsia constitucional (que se entende, primacialmente, afeta ao controle difuso de constitucionalidade, mas também, como se verá adiante neste Parecer, a ações que tramitam no sistema de controle concentrado), sendo causa de pedir a relevância do respectivo fundamento.

          No caso em realce, do referendo de 23 de outubro próximo, trata-se de argüição autônoma, razão pela qual este Parecer haverá de concentrar-se no respectivo exame.

1.     Dos conceitos pertinentes ao objeto e causa de pedir da argüição autônoma de descumprimento de preceito fundamental

          Importa, em análise sobre os pressupostos intrínsecos de admissibilidade da ADPF, com vista à discussão da constitucionalidade do referendo de 23 de outubro de 2005, clarificarmos os conceitos pertinentes ao seu objeto (‘ato do poder público’) e causa de pedir (lesão de ‘preceito fundamental’).

1.1.         “Ato do poder público”

Diferentemente da Lei 9.868/1999 que trata da ação direta de inconstitucionalidade, onde há previsão que o seu objeto se restrinja à impugnação de “lei ou ato normativo”, a disciplina legal da argüição autônoma de ADPF incide genericamente sobre “ato do Poder Público”, quer seja ato normativo, quer seja ato de concreção governativa, administrativa ou jurisdicional.

É nosso Parecer, portanto, que a sua abrangência concerne, especialmente, ao controle de constitucionalidade das decisões de natureza política, emanadas dos poderes da República e, até mesmo daquelas que decorrem do exercício direto do poder pela cidadania, como dispõe a CF no seu art. 14, incisos I a III. Em específico, cabe ADPF no controle de constitucionalidade dos atos da soberania, que se exerce em forma de referendo.

Esta é uma conclusão necessária, embora talvez inusitada, que remete à radicalidade da democracia, no seu fundamento dual como regime da soberania popular e do governo constitucional.

Na sua origem histórica, realça a contradição possível e a necessidade de conciliação entre as concepções basilares da democracia Jeffersoniana, embasada no princípio majoritário, e Madisoniana, de corte garantista. Desde logo, são irredutíveis estes fundamentos. Sem a garantia dos espaços de liberdade e vida das minorias e, no seu limite, dos direitos individuais inalienáveis que dizem da dignidade da pessoa humana, a regra decisória da maioria é ferramenta de poder totalitário. Sem o reconhecimento, por outro lado, do poder cidadão de decidir por maioria – pela extensão do sufrágio e a igualdade do eleitor – sobre a política e o governo da República, qualquer referência a direitos não ultrapassa a condição do privilégio e do tabu.

As democracias constitucionais contemporâneas avançaram na solução deste paradoxo, pelo reconhecimento paradigmático da alteridade destes conceitos – soberania e legitimidade – que se complementam e expressam, no axioma fundamental, que o poder popular – diretamente ou por representação – se exerce na forma da Constituição e da lei. Nesse sentido, o que dispõe a CF nos seus artigos 1º, parágrafo único, e 14, caput: verbis –

“Art. 1º. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamento, nos termos desta Constituição. (...)
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei...”

A soberania impende, por conseguinte, nos regimes de democracia constitucional, de legitimação. E esta legitimidade não decorre de qualquer regra mecânica de decisão (a qual se constitui na mera instrumentação do exercício da soberania), e muito menos do tosco e adversarial princípio majoritário. Decorre sim, dos princípios constitucionais, que lhe são irredutíveis e complementares, têm luz própria e fundamento distinto. Não é o voto soberano da maioria que garante os direitos da minoria; mas é a garantia constitucional aos direitos da minoria que legitima a deliberação da maioria.

Por isso que, nas democracias constitucionais, o exercício pleno, em modo próprio, da soberania – e assim o referendo – é principiologicamente suscetível ao controle de constitucionalidade. Não é a consulta referendária, pois, que define a constitucionalidade da matéria proposta à decisão popular, mas é a constitucionalidade intrínseca da matéria proposta que define a legitimidade da própria consulta referendária.

Não poderia ser mais clara, neste sentido, a legislação infraconstitucional, quando submete, no art. 1º, caput, da Lei 9.709/1998, a direta legislação popular (assim abrangendo especificamente o plebiscito e o referendo, eis que a iniciativa popular de legislação não se completa a si mesmo como processo deliberativo) aos “termos desta Lei, e das normas constitucionais pertinentes...”

Mais adiante, ao dispor sobre o objeto possível das consultas plebiscitária e referendária, a Lei 9,709/1998, no seu art. 2º, caput, exige “matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”. Tal enunciado, sem a subsunção constitucional destes institutos, efetuada pelo art. 1º do mesmo diploma legal, poderia dar lugar à configuração do plebiscito e do referendo como expressões próprias de poder constituinte. Nada mais equivocado.

Para ficar, apenas, na configuração própria do referendo, que é o foco desta análise, não nos parece possível sob a égide da democracia constitucional, em face da subsunção legal que lhe impõe a Carta de 1988, que este instituto venha a ser utilizado em tentativa de legitimação à violação das cláusulas pétreas do nosso regime constitucional, qual seja, do que vai disposto no art. 60, § 4º da Constituição Federal. Haveria nisso, uma regressão histórica e uma redução conceitual inaceitáveis, instituindo-se o totalitarismo da maioria, cuja experiência, em forma de barbárie, as ditaduras plebiscitárias e genocidas do século XX nos legaram. 

Inaceitável, na vigência do nosso regime constitucional, a utilização do referendo para se pretender legitimar, por exemplo, o ato normativo que objetivasse a exclusão da cidadania, o aprisionamento em campos de concentração e, afinal, a morte dos brasileiros que pertencessem a uma raça, a uma comunidade de crença ou a uma dada condição de classe. Inviável, também, a sua utilização para se homologar quaisquer atos de usurpação política, através dos quais se pretendesse, por exemplo, concentrar todos os poderes da República em mãos de um só indivíduo, tido como salvador da pátria em foros de qualquer sorte de promoção pessoal, corporativa ou simbólica.

Há que entender-se, portanto, a deliberação referendária de “matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional...” inscrita no caput do art. 2º da Lei 9.709/1998, como circunscrita àquelas dimensões normativas que compõem o texto Constitucional ou que, no seu limite, são passíveis de vir a integrá-lo mediante Emenda pelo Poder Legislativo. Mesmo assim, é necessário preservar-se, para a utilização do instituto em sua eficácia máxima, a hierarquia própria ao processo Legislativo.

Note-se que o referendo, segundo o §2º, deste mesmo artigo, “é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição”. Matéria constitucional, por essa via de interpretação sistemática e conforme, somente poderá ser proposta em referendo, na forma própria deste ato normativo, ou seja, como ratificação ou rejeição de Emenda à Constituição, efetivamente aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional. E assim, igualmente, no nível hierárquico inferior.

Não tem, por conseguinte, o instituto do referendo, o condão de sanear vícios de constitucionalidade, enraizados na origem das decisões submetidas à direta legislação popular.

São assim, rigorosamente insuscetíveis de submeter-se à deliberação direta da cidadania, sob a forma de referendo:
[a] Allteração a dispositivos constitucionais, em sede da ratificação ou rejeição de lei; ou
[b] Matéria legislativa, em sede de ratificação ou rejeição de um mero ato administrativo.

Contrario sensu, se correria o risco de dar uma aparência de legitimidade a atos do Poder Público que dela carecem totalmente. A história ensina, à saciedade, que, por essa via, a democracia constitucional tem sido fraudada com desastrosa conseqüência, seja pela manipulação do processo legislativo por parte do Poder Executivo, seja pela subsunção do Pacto Constitucional aos ditames de quaisquer e eventuais maiorias, no âmbito do Poder Legislativo, ad hoc articuladas ou compradas (como infelizmente transparece em nossa prática parlamentar) pelos desígnios dos poderosos do dia. O arbítrio e o terror, que lhes seguem inexoravelmente, concernem a um passado proscrito na escala civilizatória, que não interessa à consciência cidadão ou à consolidação das instituições democráticas, resgatar ou reviver neste limiar de um novo século.

Não é o referendo, efetivamente, a via apropriada para dar-se constitucionalidade à lei inconstitucional, ou legalidade ao ato administrativo ilegal. E, se assim o pretenderem, e, se afinal for convocado para essa finalidade espúria, será um ato de soberania popular, incidente sobre a configuração da esfera pública, portanto um ato da cidadania no exercício direto do Poder Público, porém carente de legitimidade. E, como tal, suscetível de proibição ou revogação pelo sistema concentrado de controle de constitucionalidade, em forma da ADPF.

1.2.         “Lesão a preceito fundamental”
Para os efeitos da admissão de ADPF, tem o STF a competência reconhecida para definir a abrangência temática e o enquadramento processual do que se entende por preceito fundamental.

          Essa tem sido uma preocupação jurisprudencial, desde logo assumida naquela Excelsa Corte. É o caso da ADPF 1 OQ, em que foi relator o Ministro JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA: verbis –
“Guarda da Constituição e seu intérprete último, ao Supremo Tribunal Federal compete o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental, cujo desresepeito pode ensejar a argüição regulada na Lei n° 9.882, de 3-12-1999.“ (STF, EMENTÁRIO N º 2131-1, ADPF 1-7 (OQ) RJ. VOTO MIN. JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, FLS. 10).

          Com efeito, o enunciado do Art. 101, § 1º da CF, ao definir o campo de incidência da ADPF, não utilizou terminologia constitucionalmente fixada. Poderia ter-se referido a violação de ‘princípios fundamentais’ e não o fez; poderia ter mencionado lesão a ‘direitos e garantias fundamentais’ e não o fez. Utilizou-se de vocábulo novo – ‘preceito’ – ainda não inscrito na classificação temática dos institutos constitucionais. E, assim o fazendo, de um lado, remeteu ao Legislador infraconstitucional a respectiva denotação legal, e, de outro, conferiu ao Pretório Excelso a competência discricionária para, em última instância, decidir sobre a constitucionalidade da sua regulamentação normativa e para, afinal, fixar prudencialmente os parâmetros da respectiva aplicação.

1.2.1.   Admissibilidade de ADPF pela natureza substantiva da questão incidente

          Ainda, no seu Voto na ADPF 1-7 (OQ) RJ, antes mencionado, o Ministro JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, avançou os alicerces dessa jurisprudência, ao incorporar, à dignidade do Julgado, doutrina do Ministro OSCAR DIAS CORRÊA e do ilustrado CELSO RIBEIRO BASTOS: verbis -
“Nesse sentido, anota o Ministro Oscar Dias Corrêa, in ‘A Constituição de 1988, contribuição crítica’, 1, ed. Forense Universitária 1991, p. 157: ‘Cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque promulgado o texto constitucional é êle o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los.” Noutro passo,observa: “Parece-nos, porém, que, desde logo, podem ser indicados, porque, pelo próprio texto, não objeto de emenda, deliberação e, menos ainda, abolição: a forma federativa do Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes, os direitos e garantias individuais. Desta forma, tudo que diga respeito a essas questões vitais para o regime pode ser tido como preceitos fundamentais. Além disso, admita-se: os princípios do Estado Democrático, vale dizer: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa, pluralismo político; os direitos fundamentais individuais e coletivos; os direitos sociais; os direitos políticos, a prevalência das normas relativas à organização político-administrativa; a distribuição de competências entre a União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios; entre Legislativo, Executivo e Judiciário; a discriminação de rendas; as garantias da ordem econômica e financeira, nos princípios básicos; enfim, todos os preceitos que, assegurando a estabilidade e a continuidade da ordem jurídica, devam ser cumpridos’ (op. cit. p. 157).” (...)
Nessa mesma linha, a lição de Celso Ribeiro Bastos que ainda, acrescenta, em sua enumeração, ‘a proteção à criança, à velhice, aos menos afortunados” (in Comentários à Constituição do Brasil (1988), 4° vol., Tomo III, p. 235).” (STF, EMENTÁRIO N º 2131-1, ADPF 1-7 (OQ) RJ. VOTO MIN. JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, FLS. 10/11)

          Vê-se bem, que o Ministro JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, teve o cuidado de descortinar, na colação dessas citações, a amplitude temática que a melhor doutrina confere ao “preceito fundamental”, que menciona a CF no seu Art. 101, § 1º. Incluem-se nesse espectro temático todos aqueles dispositivos que - numa abordagem minimalista – a Constituição expressa e literalmente considera como normas ‘fundamentais’. Nesse sentido, são objeto de ADPF as violações aos “princípios fundamentais” do Estado Democrático de Direito (CF Art. 1º, I a V, e Parágrafo único), aos “direitos e garantias fundamentais” (todo o Título II, mas especialmente, por sua fundamentação histórica e suas dimensões universalistas, aos “direitos e deveres individuais e coletivos (CF Art. 5º e seus incisos) e, por decorrência lógico-sistemática, às ditas “clausulas pétreas” (CF Art. 60, § 4º).

Igual entendimento é esboçado pelo Eminente Ministro GILMAR MENDES, que acrescenta a este núcleo duro do nosso ordenamento constitucional os chamados “princípios sensíveis”, cuja violação enseja a intervenção da União nos Estados e  Distrito Federal.
“Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5o, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da CF, quais sejam,  a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico. Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados “princípios sensíveis”, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (art. 34, VII). (STF. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) 33 – 5. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento da Liminar: Plenário, 29.10.2003. Publicação da Liminar: Acórdão, DJ 06.08.2004.)
 
Postulamos, ainda, a admissibilidade da ADPF, em face da violação dos princípios constitutivos da nacionalidade, e que, por isso mesmo, normatizam as relações internacionais da República Federativa do Brasil, como explicitados na CF Art. 4º, I a X.

Uma abordagem ampliativa, haveria ainda de incluir no rol das lesões suscetíveis de tratamento via ADPF o malferimento das normas que, por sua natureza estrutural ou relevância prática, são integrativas do que, a juízo do Excelso Pretório, se venha a considerar o núcleo sígnico da Constituição. Incluem-se aqui, todos os demais preceitos citados na colação doutrinária do Ministro José Néri da Silveira, em aresto supra-colacionado.

1.2.2.   Admissibilidade de ADPF pela natureza adjetiva da questão incidente

          Ainda numa abordagem ampliativa do que se possa entender por ‘preceito fundamental’, realça a extensão possível do poder discricionário do Excelso Pretório, para a subsunção constitucional dos atos do Poder Público que, pela sua transcendental relevância jurídica, ou pela magnitude dos seus efeitos materiais ou simbólicos – digam estes sobre a execução da política ou a preservação da moralidade pública – resultem em contradição flagrante e inarredável dos ‘objetivos fundamentais’ da República Federativa do Brasil e lesão enorme aos pressupostos funcionais da credibilidade, racionalidade e governabilidade, que estão implicados no ambiente de segurança jurídica, a ser assegurado com vista à sua realização.

Neste sentido o Voto do Eminente Ministro Cezar Peluso, realça o argumento da relevância material da causa a erodir o pressuposto da subsidiariedade como condição tout court  para a admissibilidade de ADPF:  verbis –
“Nesse caso, os gastos do Estado com o pagamento de professores seriam acrescidos do montante mensal de R$ 150.000.000,00 (cento e cinqüenta milhões de reais).
O resultado seria uma folha de pagamento apenas com professores da ordem de R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), mais até que a arrecadação do Estado com o ICMS (que hoje é da monta de R$ 350.000.000,00 - trezentos e cinqüenta milhões de reais).
Paralelamente, tramita no Estado de Pernambuco a execução por quantia certa da decisão que concedeu o direito à isonomia aos 1.894 professores.
O valor somente dessa execução é da ordem de R$ 416.747.972,87 (quatrocentos e dezesseis milhões, setecentos e quarenta e sete mil, novecentos e setenta e dois reais e oitenta e sete centavos).
Esses valores impressionantes demonstram o impacto que está sendo causado por esse tipo de demanda no Estado, a colocar em risco o próprio funcionamento orçamentário e financeiro de Pernambuco.
A própria situação de gravidade financeira suplanta uma eventual necessidade de divagações teóricas acerca do conteúdo normativo da expressão “preceito fundamental”. (DECISÃO: ADPF (Med. Liminar) 79-, Rel. Ministro Cezar Peluso – grifei e sublinhei)
 
               Mais adiante, no mesmo aresto, faz-se referência à excepcional relevância imaterial e simbólica da lesão em curso, como igualmente autorizativa ao conhecimento de ADPF pelo Excelso Pretório: verbis –
Da mesma forma, a ADPF vem sendo manejada também para abordar questões jurídicas fundamentais e de importância federal ou estadual transcendente.
Foi o que aconteceu no julgamento de questão de ordem na ADPF 54, relativa a seu cabimento para suscitar o debate em torno do problema do aborto do feto anencefálico (relator Ministro Marco Aurélio, DJ 4.5.2005).
A mesma posição do Tribunal começou a ser confirmada no início do julgamento da ADPF 46, relatoria do Ministro MARCO AURÉLIO, pela qual se discute a constitucionalidade do monopólio dos serviços postais pelos Correios.“ (DECISÃO: ADPF (Med. Liminar) 79-, Rel. Ministro Cezar Peluso – grifei e sublinhei)
 
1.2.3.   Da pertinência temática da ADPF em controle de constitucionalidade do referendo de 23 de outubro de 2005

Pouco ou nada afeta as conclusões deste Parecer a querela doutrinária e jurisprudencial sobre os limites da hermenêutica constitucional na aplicação dos parâmetros acima gizados – que referem às condições substantivas e adjetivas de admissibilidade rationae materiae em ADPF.

Com efeito, o que preocupa aos intérpretes na aplicação deste instituto, é a zona cinzenta da incidência possível da ADPF, quando se transita de uma interpretação restritiva ao numerus clausus dos preceitos fundamentais expressos da Constituição (a nosso ver, minimamente o que dispõem os arts. 1º e seus incisos, 4º e seus incisos, 5º e seus incisos, 60, §4º), para uma interpretação ampliativa, integradora de normas constitucionais que tangenciam este núcleo duro de princípios, direitos e prerrogativas.

Parece-nos, de todo adequada, a solução doutrinariamente enunciada por CASTRO NUNES e adotada pelo douto Ministro GILMAR MENDES que, a este respeito, fixou posição, na esteira do entendimento pacífico da Excelsa Corte sobre a hermenêutica dos chamados “princípios sensíveis” da Carta de 1988, enunciados no seu art. 34, VII: verbis –
“Ao se deparar com alegação de afronta ao princípio da divisão de Poderes de Constituição estadual em face dos chamados “princípios sensíveis” (representação interventiva), assentou o notável Castro Nunes lição que, certamente, se aplica à interpretação das cláusulas pétreas: “(...). Os casos de intervenção prefigurados nessa enumeração se enunciam por declarações de princípios, comportando o que possa comportar cada um desses princípios como dados doutrinários, que são conhecidos na exposição do direito público. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista do conteúdo e da extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais, ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal Federal. Quero dizer com estas palavras que a enumeração é limitativa como enumeração. (...). A enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos Estados” (Repr. n. 94, Rel. Min. Castro Nunes, Archivo Judiciário 85/31 (34-35), 1947). Essa orientação, consagrada por esta Corte para os chamados “princípios sensíveis”, há de se aplicar à concretização das cláusulas pétreas e, também, dos chamados “preceitos fundamentais”. É o estudo da ordem constitucional no seu contexto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípio basilares dos preceitos fundamentais em um determinado sistema. Tal como ensina J. J. Gomes Canotilho em relação à limitação do poder de revisão, a identificação do preceito fundamental não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas do texto constitucional, fazendo-se mister que os limites materiais operem como verdadeiros 'limites textuais implícitos' (Direito Constitucional, Coimbra, 1992, p. 1.136). Destarte, um juízo mais ou menos seguro sobre a lesão de preceito fundamental consistente nos princípios da divisão de Poderes, da forma federativa do Estado ou dos direitos e garantias individuais exige, preliminarmente, a identificação do conteúdo dessas categorias na ordem constitucional e, especialmente, das suas relações de interdependência. Nessa linha de entendimento, a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio. (STF. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) 33 – 5. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento da Liminar: Plenário, 29.10.2003. Publicação da Liminar: Acórdão, DJ 06.08.2004.)

          Do exposto resulta absolutamente pertinente a propositura de ADPF sobre os atos do Poder Público que autorizaram e que executam o referendo de 23 de outubro de 2005. Sob quaisquer enfoques – substantivo ou adjetivo, textual ou interpretativo – o malferimento de dispositivos constitucionais, a conseqüência antijurídica e os efeitos disruptivos sobre a institucionalidade vigente, que se deduzem da realização do referendo de 23 de outubro, constituem lesão gravíssima de preceitos fundamentais do nosso ordenamento, como Estado Democrático de Direito.
         
          Qualquer seja o resultado da consulta referendária, verifica-se que a sua convocação e implementação:

a.     É formalmente inepta para os fins a que se destina, eis que configura lesão ao preceito fundamental da garantia do devido processo do direito (CF art.  1º, Parágafo único, e 5º, LIV), eis que submete a ratificação ou rejeição, em forma de consulta referendária sobre artigo de legislação infraconstitucional, matéria de natureza eminentemente constitucional;
b.     Incide materialmente em lesão ao conteúdo mínimo reconhecido dos preceitos fundamentais da Constituição Federal, por violação direta e imediata dos direitos individuais e coletivos, textualmente enunciados seu art. 5º, caput (menção expressa à inviolabilidade da vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade) sendo que o primeiro destes – na prerrogativa essencial da sua legítima defesa – resta nulificado e todos os demais direta ou indiretamente malferidos, pela proibição que se pretende aprovar ou rejeitar;
c.     Configura matéria de excepcional relevância, pelas suas repercussões vitais, morais, políticas e, afinal, mas aqui em realce,  financeiras; eis que se constitui verdadeira aberratio iuris – absoluta carência de proporção e razoabilidade no investimento necessário que se estima em mais 600 milhões de reais, para a realização de uma consulta referendária antecipada ao pleito de 2005, quando a mesma poderia ocorrer a custo marginal, no processo eleitoral vindouro.

          Fazer coincidir o momento das consultas referendárias com o das eleições periódicas, é medida de puro bom senso. É o que fazem todas as democracias constitucionais em que as práticas referendárias são adotadas, nas nações ricas do chamado primeiro mundo, que, não obstante, recusam dar-se ao luxo do desperdício dos recursos públicos. Tanto mais essa prática seria pertinentem, tratando-se, o Brasil, de uma nação em desenvolvimento, que ainda não resolveu o problema da miséria e da fome, ou das condições sub-humanas do seu sistema prisonal, mormente quando, não obstante, país continental, incorrendo em altíssimos custos na realização de um pleito nacional, o faz realizar-se a cada dois anos. Não há sequer fumaça de bom direito a sustentar esse elevado dispêndio. 

          Nenhuma justificação razoável de política pública justifica o açodamento, na realização do referendo em realce, intercalada entre dois pleitos. Até porque, como se verá mais adiante, na análise do mérito, serão gastos 600 milhões de reais para proibir a comercialização de um número absolutamente inexpressivo de armas em face do estoque delas existente no Brasil.[3]



2.     Do controle concentrado de constitucionalidade sobre o plebiscito de 23 de outubro via ADPF

É decorrência direta do princípio reconhecido da supremacia do direito – e da sua concreção, no sistema românico-germânico a que se filia o nosso ordenamento, nos dispositivos da Constituição vigente – o descabimento, pela via pública de deliberação, da edição de normas ou da realização de atos que contrariem ou ameacem contrariar a supremacia da Constituição Federal.

2.1.         Do sistema processual da defesa da Constituição

Na defesa da Constituição, em face de violações promovidas, seja pela ação ou omissão dos poderes representativos e jurisdicionais, seja pela própria cidadania mediante o exercício de direta legislação popular (nos termos da CF Art. 14, I e II), não foi descurado o Legislador de 1988.  Com efeito, municiou-nos, no arsenal da Jurisdição Constitucional, de um sistema abrangente, complexo, integrado e complementar de procedimentos, especializado na forma dos processos de hábeas corpus, hábeas data, mandado de segurança individual e coletivo, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ações declaratórias de inconstitucionalidade e de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, recurso extraordinário perante o STF, ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal e estadual, ação de reclamação perante o STF, ação de responsabilidade (ou impeachment) e das argüições autônoma e incidental  de descumprimento de preceito fundamental.

          Uma abordagem mais incisiva da sistemática vigente de defesa constitucional sugere a localização, no topo da respectiva hierarquia processual, da ADPF, seja porque incide sobre violações máximas da institucionalidade vigente, seja porque demanda conhecimento sumário e solução antecipatória face à gravidade e irreparabilidade de lesões que afetam o próprio cerne da constitucionalidade vigente. É no seu manejo que este Parecer visualiza o caminho jurídico para a suspensão liminar e, afinal, revogação do referendo em curso e dos atos normativos lhe estão implicados. Para estes efeitos, por outro lado, é importante sinalizar a natureza diferenciada dos pressupostos e ritos que contemplam a procedimentalização de ADPF, como:
a.     Argüição avocatória de descumprimento de preceito fundamental – CF, art. 102, §2º e Lei 9.882/1999, art. 1º, inciso I, tendo por efeito avocar-se, o STF, em sistema de controle concentrado, a decisão de conflitos de constitucionalidade, que envolvem controvérsia constitucional relevante a respeito de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal
b.     Argüição autônoma de descumprimento de preceito fundamental, tendo por objeto ato normativo – CF, art. 102, §2º e  Lei 9.882/1999, art. 1º, caput – a qual incide, inclusive, sobre controvérsia constitucional já suscitada em sede de ADIN(s), sempre que, pela gravidade e iminência da sua lesividade, deva processar-se e decidir-se com maior urgência, e até por decisão liminar monocrática, justo por tratar-se de procedimento, cuja natureza é literalmente preventiva ou reparatória dos efeitos concretos da inconstitucionalidade;
c.     Argüição autônoma de descumprimento de preceito fundamental, tendo por objeto ato de concreção governativa, administrativa ou jurisdicional – CF, art. 102, §2º e Lei 9.882/1999, art. 1º, caput  - aplicável subsidiariamente, no controle concentrado de constitucionalidade, no exame de atos do Poder Público, insuscetíveis de prevenção ou reparação mediante as ações próprias de responsabilização, mediante impeachment ou reclamação.

Amolda-se com propriedade a ADPF, a cumprir função antecipatória da tutela jurisdicional nas violações máximas da institucionalidade democrática. Aqui, o tempero reconhecido, ao requisito admissional da “subsidiariedade” (introduzido pelo art. 4º, §1º da Lei 9.882/1999), será sempre a ameaça ou a ocorrência de lesão relevante, grave, iminente e concreta, a preceito fundamental da Constituição.

2.2.         Do enquadramento do referendo de 23/10/2005 na sistemática da defesa da Constituição

Necessário agora, enfrentar a questão preliminar posta neste Parecer, indicando-se, qual o procedimento mais adequado, neste tempo, ao controle de constitucionalidade sobre os atos de autorização, convocação e realização do referendo de 23 de outubro de 2005.

É bem sabido que descabe mandado de segurança contra lei. Quer nos parecer descaiba, igualmente e pelos mesmos fundamentos, a utilização deste remédio extremo, contra o exercício da direta legislação popular. E, com mais razão ainda, porque, neste caso, não se trata de exercício de ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica, mas de um efetivo ato de poder, em exercício da soberania popular.

Inexiste, de outra feita, e até seria impróprio suscitá-la no presente estágio de evolução da questão, querela constitucional impugnante da consulta referendária em foco, sob jurisdição ordinária ou no sistema difuso de controle constitucionalidade. Descabe, por isso mesmo, no exame de constitucionalidade da consulta referendária de 23/10/2005, a via processual da argüição avocatória do descumprimento de preceito fundamental (Lei 9.882/1990, art. 1º, inciso I).

Assim postos, os parâmetros do enquadramento procedimental juridicamente possível inequivocamente apontam como caminhos próprios e precípuos à defesa da Constituição, no presente caso, os procedimentos de ADIN (CF art. 102, I, ‘a’) e ADPF (CF art. 102 § 1º, cominado com a Lei 9.882/1990, art. 1º, caput), sendo que:
d.     Como impugnação das normas abstratas – tanto a norma propositora, como a autorizadora e as reguladoras da consulta referendária – essa possibilidade jurídica concerne ao procedimento próprio de ADIN; mas, ainda, cumulativamente, pelo temperamento que se der ao princípio da subsidiariedade, admite a postulação de ADPF.
e.     Como impugnação concreta, do ato de poder que se exercerá em referendo, objetivando a prevenção dos efeitos deletérios, materiais e morais, inafastáveis na hipótese da sua realização, essa possibilidade jurídica concerne à via própria, originária, autônoma e única, da ADPF.

Nesse contexto, merecem análise mais detalhada os pressupostos de admissibilidade da ADPF no sistema concentrado de constitucionalidade do STF.

          Quando o objeto desta ação diz sobre atos estritamente normativos do Poder Público, a sua efetividade, como procedimento autônomo, sugere cuidados ao respectivo operador, eis que suscita uma ambigüidade estrutural capaz de promover entendimentos prudenciais contraditórios.

Inicialmente, realça o fato que a causa de pedir na ADPF, será sempre comum à causa de pedir em ADIN. Com efeito, sempre que houver uma lesão a preceito fundamental, haverá também uma lesão a preceito da Constituição, embora o inverso não seja verdadeiro. Isso que, grosso modo, e por efeito do que dispõe o art. 4º, § 1º da Lei 9.882/1999, induziria à impossibilidade jurídica da respectiva admissibilidade. Não obstante, como esta argüição não pode ser ‘inócua’, pois se deve presumir a efetividade da respectiva provisão legal, haverá que esclarecer-se como se legitimaria a utilização da ADPF – em paralelo, em complemento ou em detrimento de uma ADIN – com vistas à impugnação de ato normativo do Poder Público malferindo preceito fundamental da Constituição Federal. E essa é uma questão que, nos parece, só pode ser resolvida em face do caso concreto, avaliando-se da aplicação e do temperamento que serão dados à regra da subsidiariedade.

2.2.1.   Do princípio de subsidiariedade no controle de constitucionalidade via ADPF

Desde logo, é relevante fixar a irrelevância, na aplicação da regra do art. 4º, § 1º da Lei 9.882/1999, de que os meios alternativos eficazes para sanar a lesividade sejam meramente possíveis ou tenham sido efetivamente ajuizados. Em tese, existindo uma esfera de competência primária, haveria incidência da vedação constitucional da ADPF.

De plano é necessário dar-se, aqui, temperamento ao princípio da subsidiariedade em admissão de ADPF. Sua aplicação literal praticamente implicaria na absoluta ineficácia do instituto, até porque desenhado para dar solução efetiva e rápida, a questões relevantes envolvendo lesões máximas da Constituição Federal. Sempre haveria, no sistema difuso ou concentrado de controle de constitucionalidade, procedimento alternativo para a coibição ou reparação destas violações. Como não se admite regramento, mesmo em sede constitucional, tendente a abolir a eficácia do instituto regulamentado, tomada em sentido estrito, seria flagrante a inconstitucionalidade do que dispõe o art. 4º, §1º da Lei 9.882/1999.

O acatamento deste critério de admissibilidade pelo Pretório Excelso, não obstante, em que pese o pequeno acúmulo de julgados, numa modalidade de ação que conta, desde a sua previsão constitucional, com cerca de apenas 75 processos ajuizados, mediante interpretação flexível e aplicação finalística, tem convalidado a incidência e delineado a sua utilidade.

No que refere aos fins que seriam preenchidos pelo caráter subsidiário da argüição de preceito fundamental, no sistema de controle de constitucionalidade, parecem já consolidados os seguintes parâmetros de julgamento:
[a] O princípio da subsidiariedade tende a ser aplicado num sentido muito literal quando se tratar de ações que, embora focalizando violações de preceitos fundamentais, pela singularidade dos respectivos atos e o alcance restrito das suas repercussões, possam ser mais bem manejadas no controle difuso;
[b] O princípio da subsidiariedade tende a não ser aplicado em face das ações propostas ao controle difuso de constitucionalidade, as quais, pela reiteração das respectivas violações e pelo caráter abrangente dos seus efeitos, incidam numa das finalidades precípuas da nova modalidade de controle que é, exatamente, a de prover um caminho hábil para a solução incidental, consistente e definitiva, para a reiteração, a diversidade de entendimento, e a dilação temporal das controvérsias constitucionais que se multiplicam na jurisdição ordinária, afetando, senão por outras razões, pela relevância do seu impacto e a insegurança da respectiva solução, a credibilidade do ordenamento constitucional;
[c] O princípio da subsidiariedade tende a ser aplicado quando se tratar de ações genericamente suscetíveis de solução pelo sistema concentrado do STF, em especial, na forma de ADIN;
[d] Não obstante e, sob pena de inviabilizar-se, grosso modo, o manejo autônomo deste instrumento processual, eis que, pelo princípio hermenêutico da sua presunção de constitucionalidade, ainda que virtualmente, todos os atos do poder público são dotados de conteúdo normativo e, por conseguinte, teoricamente suscetíveis de controle em abstrato, via ADIN, aqui também, e até principalmente, o princípio da subsidiariedade deve submeter-se aos temperamentos, que a própria Lei 9.882/1999 se encarrega de enunciar: da relevância da matéria constitucional e da urgência da respectiva decisão.
[e] Finalmente, é de se mencionar que o exame dos atos de direta concreção do Poder Público, como é o caso da inconstitucionalidade intrínseca, do referendo de 23 de outubro, pelas suas circunstâncias, objeto, tempo e lugar, é passível de controle no sistema concentrado, pela via exclusiva (não incidente, portanto, a condição da subsidiariedade) da ADPF.

2.2.2.   Da admissibilidade de ADPF em face da discussão constitucional sobre o referendo de 23/10/2005 em sede de ADINs, e da respectiva fungibilidade

Tem-se, do antes exposto, que a ADPF se constitui num procedimento apto a prover julgamento mais expedito, senão sumário da defesa da Constituição, nos seus preceitos fundamentais, em questões que revestem importância crucial, excepcional gravidade e solução inadiável – atributos especialmente invocáveis, quando se arrasta discussão constitucional, mesmo em forma de ADINs, sem solução descortinável no prazo necessário para a prevenção ou reparação efetiva dos efeitos deletérios da inconstitucionalidade argüida.
Neste tempo, já correm, na competência do sistema de controle concentrado do STF, quatro ADINs, de nºs 2187, 3137, 3198, e 3263, impugnando vários dispositivos legais do Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/2003. Corre, igualmente, no STF, a ADIN de nº 3535, impugnando: [a] em específico, o art. 35 da Lei 10.826/2003; [b] por arrasto, o Decreto Legislativo nº 780/2005 do Congresso Nacional que autorizou; e [c] por aditamento, as resoluções do TSE que regularam a realização do referendo de 23 de outubro de 2005.
         
          Todas essas cinco ADINs foram distribuídas e encontram-se eventualmente conclusas em mãos do Relator, o Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Velloso. Este, entretanto, vem de ser empossado em 15/04/2005, como Presidente do TSE, tornando-se, desta feita e como signatário que é, das regras que disciplinam o processo referendário sub judice e administrador da sua realização, impedido de qualquer participação no julgamento da matéria constitucional. Por integrarem a composição do mesmo TSE, encontram-se igualmente impedidos de participar na decisão destas ADINs, os Excelentíssimos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello.

          Todas essas ADINs foram interpostas com pedido cautelar, em nenhum dos cinco casos apreciado pelo Relator nos termos sumários do art. 10 da Lei 9.868/1999. Foi-lhes dado o trâmite do art. 12 da mesma Lei que, na prática, representa a fusão da questão cautelar no julgamento do mérito e, por conseqüência, a conversão do julgamento abreviado da medida cautelar ao rito ordinário da ADIN.

Assim posta a discussão constitucional, não se vislumbra por essa via procedimental a possibilidade de solução do litígio com anterioridade à realização da consulta referendária. De um lado, resta impedido o respectivo Relator de conduzir os processos a julgamento, pelo menos antes de desincumbir-se da administração do referendo; de outro, o mesmo impedimento atingindo três ministros que integram, em caráter efetivo, a composição do pleno do TSE, constrangem ao seu limite o quorum legal previsto para o julgamento de constitucionalidade (Lei 9.868/1999, art. 22). Basta, portanto, o não comparecimento de um Ministro ao julgamento eventualmente aprazado, para que se processe o efetivo bloqueio da votação.

Ocorre ademais que, afastado o julgamento antecipado da medida cautelar, inexiste no rito processual da ADIN, previsão legal para o deferimento liminar do pleito ou para aprazar-se o respectivo julgamento em tempo hábil à prevenção dos efeitos deletérios decorrentes da realização da consulta plebiscitária. Disso resulta encontrar-se o Supremo Tribunal Federal, por conseqüência do encaminhamento até aqui dado à discussão constitucional em realce, embretado no seu próprio curso e assentado sobre o desperdício iminente e irrecuperável de R$ 600 milhões, a conta do erário federal, que é o custo estimado de realização da consulta referendária.

Nada mais eloqüente, pela sua relevância e urgência, a sugerir in casu o temperamento necessário do que dispõe a Lei 9.882/1999 no seu art. 4º, § 1º. Reconheça-se aqui, parafraseando a lavra do ilustrado Ministro Cezar Peluso, que a própria situação de gravidade financeira suplanta uma eventual necessidade de divagações teóricas acerca do conteúdo normativo do princípio da subsidiariedade na admissão de ADPF. 

Mais incisivamente, a jurisprudência da Excelsa Corte tem dado tempero ao critério da subsidiariedade, em sede de um princípio mais substancial, que é o da efetividade da respectiva prestação jurisdicional. Assim, ainda que a controvérsia constitucional esteja instaurada no sistema de controle concentrado do STF, se decorrer do modo como tramita e da fase do respectivo processamento a inviabilização do resultado preventivo, preventivo da respectiva lesividade, que está em realce na disciplina processual da ADPF, caberá a respectiva admissão. É o que se depreende da lavra de Sua Excelência, o Ministro Cezar Peluso:
“Da mesma forma, o princípio da subsidiariedade para o cabimento da ADPF não oferece obstáculo à presente ação. É que este SUPREMO vem entendendo que a subsidiariedade exigida pelo art. 4º, § 1º da L. 9.882/99 não pode ser interpretada com raciocínio linear e fechado. A subsidiariedade de que trata a legislação diz respeito a outro instrumento processual-constitucional que resolva a questão jurídica com a mesma efetividade, imediaticidade e amplitude que a própria ADPF. Em se tratando de decisões judiciais, não seria possível o manejo de qualquer ação de nosso sistema de controle concentrado.” (DECISÃO: ADPF (Med. Liminar) 79-, Rel. Ministro Cezar Peluso)
 
            No mesmo sentido, o aresto de Sua Excelência o Ministro Celso de Mello: 

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (CF, ART. 102, § 1º). AÇÃO ESPECIAL DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE (LEI Nº 9.882/99, ART. 4º, § 1º). EXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO APTO A NEUTRALIZAR A SITUAÇÃO DE LESIVIDADE QUE EMERGE DOS ATOS IMPUGNADOS. INVIABILIDADE DA PRESENTE ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO. – O ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo princípio da subsidiariedade (Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º), de tal modo que não será ela admitida, sempre que houver qualquer outro meio juridicamente idôneo, apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado. Precedentes: ADPF 3-CE, ADPF 12-DF e ADPF 13-SP. A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, no entanto, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio em questão, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar, de modo eficaz e real, a situação de lesividade que se busca neutralizar com o ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental”. (ADPF n.º 17-AP60, relator o Ministro Celso de Mello)

Nenhum obstáculo, por conseguinte, se poderia opor ao ajuizamento de ADPF sobre a controvérsia constitucional instaurada em ADIN, em cujo rito e estado do processo, não se vislumbra a possibilidade de se produzirem os resultados efetivos que seriam exigíveis para o exame e a solução tempestiva da matéria.

De outra feita, nenhum prejuízo poderia trazer aos impetrantes, no foco da questão em realce neste Parecer, o eventual entendimento, pela Corte Excelsa, que a matéria poderia ser mais bem resolvida, e assim portanto tempestiva e efetivamente, em forma de ADIN. Bem ao contrário, tal decisão implicaria na responsabilidade assumida, de dar-se andamento e conseqüência à questão constitucional ajuizada, sob pena de cerceamento ao princípio do acesso à Justiça. Nem o Supremo poderia, negando admissão à ADPF, em razão da tramitação de ADIN, que versa sobre a mesma controvérsia constitucional, recusar-se, em paralelo, a dar a esta o tratamento eficaz, que se pretendera obter na via mais específica do controle constitucional preventivo. 

 Parece-nos, assim, que o manejo prudencial da ADPF pelo Pretório Excelso, nestas circunstâncias, haveria de considerar, também, a natureza fungível destas duas vias do controle concentrado de constitucionalidade.

          A argüição de lesão de preceito fundamental admite a concessão de medida liminar, nos termos do art. 5º e seus parágrafos da Lei 9.882/1999. De outro lado, e significativamente, ao disciplinar o processamento da ação direta de inconstitucionalidade, cuidou o legislador em admitir-lhe a concessão de medida cautelar, com efeito erga omnes de eficácia ex nunc. Mais do que isso, o legislador reconhece formalmente, na forma do art. 12 da Lei 9.868/1999, ao relator da ADIN, a prerrogativa de subsumi-la no rito da própria medida cautelar, o que demarca bem claramente a importância, eventualmente, a predominância do conteúdo cautelar nestas via de apreciação da controvérsia constitucional.

Com efeito, quando se trata de coibir e sancionar as violações da constituição, dada a magnitude e a conseqüência dos seus efeitos jurídicos, decorrem, geralmente, lesões imediatas e enormes. Seguindo a distinção presente no Código de Processo Civil, e coerente com a natureza das respectivas ações no controle de constitucionalidade, o legislador, quer nos parecer, reservou à ADIN tratamento possível de ação cautelar, enquanto dotou a ADPF das características próprias de um procedimento típico de cognição sumária, de elevado potencial preventivo, antecipatório da prestação jurisdicional, face à lesividade concreta dos atos de poder submetidos ao seu controle. 

É bem sabido que o Estatuto Processual, fonte subsidiária da interpretação constitucional, já reconhece a fungibilidade dos pedidos antecipatórios, vis a vis dos processos cautelares. Assim, dispõe o CPC, art. 7º, § 3º. “Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.” Por lógica conseqüência e extensão, é nosso parecer que, na ausência de regramento em contrário, pode o STF dar tratamento e converter ao processamento de ADIN, se entender da existência dos respectivos pressupostos e da melhor tramitação da matéria sob este rito, em pedido de ADPF. Como enuncia a doutrina de CÂNDIDO DINAMARCO: “metodológicamente, a regra explícita da fungibilidade tem o mérito de sugerir a visão unitária do grande gênero medidas urgentes, que é caminho aberto para o enriquecimento da teoria das medidas antecipatórias...” [4]

Sob este prisma, partilhamos a convicção do eminente professor de direito da USP, segundo a qual: “Não há fungibilidade em mão única de direção.” [5] São em grande medida, os pressupostos processuais da ADIN comuns com aqueles da ADPF; tendo esta, por suas características específicas, abrangência cumulativa, mas de caráter mais restrito. Neste sentido, até será possível tratar-se da constitucionalidade de um preceito fundamental no sistema difuso em forma de ADIN; quando porém, a discussão destes fundamentos tivesse relevância enorme e urgência máxima, caberia melhor submete-lo, ainda que por via do instituto da fungibilidade, ao rito da ADPF. 

2.2.3.   Da admissibilidade de argüição autônoma e exclusiva de descumprimento de preceito fundamental, focando o referendo de 23 de outubro de 2005, como ato de concreção do Poder Público

Interessa ao presente caso fixar a incidência de uma última hipótese de admissibilidade de ADPF, particularmente talhada para oferecer-lhe solução.

Sabe-se que o referendo mobilizará milhões de brasileiros num ato, cuja realização lhes propõe e cuja formulação os predispõe à violação direta de um preceito fundamental da institucionalidade democrática Isso acarreta, mesmo que inviabilizada a posteriori a pretensão deletéria, prejuízo simbólico tão insidioso, quanto inestimável. Basta dizer que o precedente abre espaço para vir a questionar-se em plebiscito ou referendo, mais adiante, por exemplo, a proibição da propriedade privada, da liberdade de expressão ou, para ser mais pontual e incisivo à sensibilidade do Juízo, a legitimidade das prerrogativas funcionais da magistratura.

E se realizará a um custo multimilionário, cuja previsão orçamentária é da casa dos R$ 240 milhões, mas cujos custos reais são estimados em valor três vezes superior, atingindo a casa dos R$ 600 milhões. Mas o que ainda é mais grave é que este custo resta totalmente supérfluo. Eis que o mesmo referendo poderia se realizar a um custo residual ínfimo, se fosse realizado em concomitância com as eleições nacionais, como ocorre em todas as democracias avançadas – aliás, países ricos que, entretanto, não se dariam ao luxo de jogar tão expressivo quantia do erário público na lata de lixo da história.

Parece-nos, pois, neste tempo e condições, viável e necessária, a interposição da argüição de descumprimento de preceito fundamental, em processo autônomo, impugnante dos atos normativos que integram a propositura, autorização e regulação do referendo de 23 de outubro. Tal procedimento, ainda que corra conexo por seu objeto e incidente sobre a questão constitucional irresolvida em sede das ADINs já distribuídas sobre essa matéria constitucional, não poderá entretanto ser distribuído por dependência ao respectivo relator, eis que será parte nesta impugnação o Egrégio Tribunal Superior Eleitoral e, assim, presente, in casu o impedimento do CPC, art. 134, inciso VI.

Sob estas condições, poderá o relator sorteado na distribuição exercitar a prerrogativa heróica de, mediante decisão histórica de transcendental significado, avocar-se a decisão liminar da matéria constitucional, ainda que em decisão provisória e pontual, mas necessária para a prevenção da lesão enorme, concedendo a suspensão do referendo, com fundamento no que dispõe a Lei 9.882/1999, no seu art. 5º, §1º: “Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do tribunal pleno.”

          Na sua conseqüência mínima, essa decisão promoveria uma economia de centenas de milhões de reais aos cofres públicos e remeteria para outro contexto político parlamentar – já expurgado do descrédito do processo legislativo que presidiu a votação do Estatuto do Desarmamento – a tramitação de nova decisão sobre a eventual convocação do referendo. Hipótese remota, esta, eis que, ao que tudo indica, se teria assegurado por esta via o tempo necessário para o processamento do mérito, sobre a matéria constitucional implicada na decisão referendária, de sorte a prevenir-se a renovação da sua convocação pelo Legislativo nos mesmos e inaceitáveis termos.


RAZÕES DE MÉRITO

A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO CONTRA A FRAUDE POLÍTICA, A LESÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A IRRESPONSABILIDADE GESTIONÁRIA

“Cautela, senhores: não se pode enganar muita gente por longo tempo com tamanha desfaçatez. Somos um país pouco desenvolvido, com muita gente ainda desinformada e por isso facilmente manobrada, mas somos um povo honrado. E os honrados podem se manifestar e agir, na indignação da integridade – privilégio de poucos.” (LUFT, Lya: “A República do rabo preso”. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição 1917, ano 38, nº 32, 10 de agosto de 2005.)  

II – DOS FATOS E DE COMO ELES SÃO MANIPULADOS NAS ESTATÍSTICAS  QUE SUSTENTAM A PROIBIÇÃO REFERENDÁRIA

Não se tem conhecimento, na história vivida da política brasileira, de mais escandalosa manipulação estatística e retórica, a retirar dos fatos conclusões espúrias, como aquela que tenta embasar a campanha nacional pela aprovação do Estatuto do Desarmamento.
         
3.     Os argumentos e os números da mortalidade por arma de fogo

Os argumentos e os números, que ora são jogados ao consumo acrítico da opinião pública, desrespeitam quaisquer cânones científicos, e conseguem tirar conclusões absolutamente contraditórias dos próprios fatos que apresentam.

Primeiro, porque neste país não existem estatísticas minimamente confiáveis, e muito menos comparáveis, sobre a violência e a criminalidade. O número de ocorrências registradas é residual, os registros são falhos, a investigação é ínfima, e os seus resultados se perdem no tempo e no emaranhado da processualística criminal. Segundo, porque o seu resgate pela pesquisa é difícil, ocasional e, tanto quanto tenho conhecimento, não oferece suporte à formação de políticas públicas específicas e consistentes, como é o caso das que referem o controle de armas. Por isso mesmo, a política de segurança pública no Brasil ainda é, e continuará sendo, pelo menos, até que sua base informacional seja trabalhada, de forma responsável e transparente, muito pouco ‘científica’. Terceiro, porque os estudos que ora estão sendo produzidos, no afã de demonstrar os resultados positivos da política desarmamentista capitaneada pelo Ministério da Justiça, são intelectualmente inidôneos, além de metodologicamente toscos e insuscetíveis de apresentar resultados confiáveis, na sustentação das suas próprias conclusões. 

Isso não significa que não se possa formular e adotar, neste País, uma política de segurança honesta, conseqüente e eficaz para os fins a que se destina. Basta para isso que se trabalhe, sobre a precariedade dos dados disponíveis, uma adequada e consistente mediação de princípios transparentes a condutas desejadas. O que, entretanto, não pode acontecer, é que se joguem números e informações inconsistentes, até porque contraditórios entre si, na fundamentação de decisões temerárias, inconseqüentes e funestas – pior ainda, em flagrante violação do direito mais fundamental da pessoa, que é a legítima defesa da vida.

3.1.         Macro-estatísticas comparadas da mortalidade por arma de fogo no Brasil e Estados Unidos.

Não cabe aqui, fazer um inventário da produção pseudo-científica, que hoje compromete a credibilidade intelectual das instituições acadêmicas, das ONGs e das instituições oficiais, que promovem a campanha pelo desarmamento civil. Mas não é possível conduzir-se este debate, em foros de seriedade, a um termo de conclusão, sem referir e cobrar resposta desta militância para alguns dados circunstanciais.

Ao tempo em que se discutia no Congresso Nacional o projeto do Estatuto do Desarmamento, estimativas bastante intuitivas, mas genericamente aceitas, davam conta da existência de cerca de 20 milhões de armas em mãos de civis no Brasil (com 180 milhões de habitantes) e 240 milhões de armas nos Estados Unidos (para uma população de 270 milhões). Grosso modo, isso significa um índice de 0,11 armas por habitante no Brasil e de 0,88 nos Estados Unidos – uma proporção, portanto, de 1 para 8.  De outro lado, informações produzidas – e, portanto, supostamente aceitas – pelo próprio lobby do desarmamento, no coração do poder, o Ministério da Justiça, situam a taxa de homicídios no Brasil, como cerca de cinco vezes superior à dos Estados Unidos[6].

Especializando-se esta análise, no estudo da população jovem vitimizada por armas de fogo, o ISER (Instituto de Estudos Superiores de Religião), em pesquisa elaborada por Luke Dowdney, reconhece que a diferença entre as respectivas taxas de mortalidade é de aproximadamente 1 morador de Nova York para 8 residentes no Estado do Rio de Janeiro (por cem mil habitantes).

Tabela 1. TAXA DE MORTALIDADE POR ARMA DE FOGO
(MORTES POR 100 MIL HABITANTES, EM 1999).
LOCAIS
IDADES
MENORES DE 18 ANOS
ENTRE 15 E 17 ANOS
SUBTOTAL
Rio de Janeiro (Estado)
12,8
61,8
74,6
Califórnia (EUA)
2,4
11,9
14,3
Washington (EUA)
1,9
7,7
9,6
Nova York (EUA)
1,5
8
9,5
Proporção: RJ/NY
853,3%
772,5%
785,2%
Fonte: Zero Hora – 10/09/2002

Qualquer cidadão atento, ante as afirmativas do lobby do desarmamento, haveria de se perguntar o óbvio: como explicar-se que, no Brasil, que tem oito vezes menos armas que os Estados Unidos, a taxa de homicídios seja cinco vezes superior, e as taxas de mortes entre jovens por armas de fogo cheguem a ser cerca de oito vezes maiores. Numa tabela de contingência esta correlação, de ‘–8’ e ‘+8’, tem significância plena e sugere causalidade absoluta. Isso que traduzido em linguagem corrente significa, grosso modo, 100% de certeza estatística para a hipótese de uma associação causal, mas entre o maior número de armas e o menor número de homicídios por arma de fogo.

Não desconhecemos das dificuldades metodológicas envolvidas nesta relação linear e simplista. O Brasil é diferente dos Estados Unidos, outros fatores podem estar influindo nesta relação, de sorte que a sua força causal, na realidade, talvez não seja tão acentuada. De outro lado, esta aparente regularidade numérica, poderia estar sinalizando uma relação espúria – vindo a demonstrar-se, por exemplo, um epifenômeno da desigualdade socioeconômica entre os dois países. Se considerarmos, o tamanho da renda média nos Estados Unidos e no Brasil, confrontado às respectivas taxas de homicídio e mortes por armas de fogo, poderíamos eventualmente encontrar correlações estatísticas quase idênticas. O que estaria, entretanto e tão simplesmente, demonstrando a irrelevância do número de armas na vitimização da população civil.

Não imaginamos, entretanto, como se poderia validar estatisticamente a hipótese contrária, que sustenta a campanha do desarmamento. Guardadas as proporções, uma contraprova, com os mesmos índices de significação e correlação estatística, implicaria que o número de mortes por arma de fogo, entre os 15 e 18 anos, em Nova York se elevasse de 9,5 por cem mil, para cerca de 590 – ou seja, que aproximadamente 111 mil jovens nova-iorquinos fossem mortos anualmente por armas de fogo, ao invés dos atuais 1,8 mil. De qualquer forma, o ônus desta contraprova incumbe aos formuladores da hipótese fática, que a realidade falsifica. 

Quando se transita desses dados de amplitude regional, para uma análise mais detalhada dos índices nacionais, essa análise se confirma e de forma ainda mais espetacular.
Recente estudo oficial do Ministério da Saúde[7], destinado oferecer suporte à política oficial do desarmamento compulsório, permite a montagem de quadros estatísticos sobre a mortalidade por causas externas – entre as quais a provocada por projéteis de arma de fogo (PAF) – no Brasil, como seguem:
Tabela 2. Brasil 2002: Mortes por causas externas
MORTES POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NO BRASIL /2002
MORTES POR ARMA DE FOGO (PAF)
MORTES POR OUTRAS CAUSAS EXTERNAS
TOTAIS
Homicídios
34.279
22.516
56.795
Suicídios
1.371
6.355
7.726
Intencionalidade Desconhecida +
Acidentes
2.438**
59.591*
62.029
TOTAIS
38.088
88.462
126.550
  *Acidentes de Trânsito = 32.776; **Acidentes PAF = 305 (0,2% do total geral)
   Fonte: Ministério da Saúde, op. cit. nota 10

Tabela 3. Brasil 2002: Índice de mortes por 100.000 habitantes

MORTES POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NO BRASIL /2002
MORTES POR ARMA DE FOGO (PAF)
MORTES POR OUTRAS CAUSAS EXTERNAS
TOTAIS
Homicídios
19,97
13,12
33,08
Suicídios
0,80
3,70
4,50
Intencionalidade Desconhecida + Acidentes
1,41
34,71
36,13
TOTAIS
22,19
51,53
73,72
  Base: População do Brasil, 171.667.536 habitantes (PNAD 2002)

          Informações disponíveis no site da National Safety Council (NSC-Org) dos Estados Unidos, tornou possível a visualização das estatísticas comparáveis – considerando-se o mesmo ano e as mesmas variáveis – da sociedade americana, como seguem:
Tabela 4. Estados Unidos 2002: Mortes por causas externas
MORTES POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NOS USA /2002
MORTES POR ARMA DE FOGO (PAF)
MORTES POR OUTRAS CAUSAS EXTERNAS
TOTAIS
Homicídios = assalto + Int. Legal
12.129
5.893
18.022
Suicídios
17.108
14.547
31.655
Intencionalidade Desconhecida + Acidentes
762**
114.192**
113.673
TOTAIS
29.999
134.632
164.112
  * Acidentes de trânsito = 48.366; **Acidentes PAF = 243 (0,1% do total geral)

Tabela 5. Estados Unidos 2002: Índice de mortes por 100.000 habitantes

MORTES POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NOS USA /2002
MORTES POR ARMA DE FOGO (PAF)
MORTES POR OUTRAS CAUSAS EXTERNAS
TOTAIS
Homicídios = assalto + Int. Legal
4,21
2,05
6,26
Suicídios
5,94
5,05
10,99
Intencionalidade Desconhecida + Acidentes
0,26
39,66
39,48
TOTAIS
10,42
46,76
56,99
   Base: População dos Estados Unidos, 287.941.220 habitantes [NSC-ORG, 2002]

            Uma síntese comparativa destes dados transnacionais é sobremodo ilustrativa. Subtraindo-se, os índices de mortalidade nos Estados Unidos, daqueles que ocorrem no Brasil, o resultado permite visualizar, entre os nacionais dos dois países vitimados por causalidades externas, como e quantos brasileiros morrem a mais, ou a menos que os norte-americanos.

Tabela 6. Comparação dos indicadores do Brasil em relação aos EUA
MORTES POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NO BRASIL /2002
MORTES POR ARMA DE FOGO (PAF)
MORTES POR OUTRAS CAUSAS EXTERNAS
TOTAIS
1:100.000
%
1:100.000
%
1:100.00
%
Homicídios
15,76
474,3%
11,07
640%
26,83
528%
Suicídios
-5,14
13,5%
-1,35
73%
-6,49
 41%
Intencionalidade Desconhecida + Acidentes
1,15
542,3%
-4,95
88%
-3,34
92%
TOTAIS
11,77
213,0%
4,77
110%
16,73
129%
  Base: dados agregados das Tabelas 2 a 5 deste Parecer.

            Dessa comparação sintética, lê-se que os brasileiros se suicidam menos e morrem menos de causas acidentais e de intencionalidade desconhecida que os norte-americanos. Por outro lado, genericamente, os brasileiros morrem mais de causas externas, e estas mortes se devem aos índices mais elevados de mortalidade por efeito de armas de fogo (213% em relação aos índices americanos) e especialmente em razão dos homicídios por arma de fogo (473% em relação aos índices americanos).

          Sabendo-se, de outro lado que, para cada arma leve existente no Brasil existem pelo menos doze nos Estados Unidos, e, grosso modo, para cada lar brasileiro armado, existem pelo menos três nos Estados Unidos, das duas uma: ou se descarta completamente a influência do número de armas em poder da população civil como determinante dos índices de criminalidade e mortalidade por arma de fogo; ou se reconhece a determinação inversa, qual seja que estes índices diminuem pela disseminação das armas.[8]

3.2.         A fraude do desarmamento compulsório em escala internacional

          O discurso e a campanha desarmamentista no Brasil são recheados de de contradições. Uma delas é que, para os mais desavisados, que não buscam a confirmação das informações disseminadas por esta militância, nos sites especializados da internet, são referenciadas dezenas de estudos que supostamente corroborariam as suas pretensões. Ao se aprofundar a leitura destes estudos e a análise desses dados, o resultado, não obstante, pode ser muito diferente.

          É o caso do projeto da Brookings Institution, conhecido “think thank” de Washington, arrolado no site www.desarmamento.org, mantido pela Fundação Viva Rio, onde vamos encontrar, num debate metodológico ainda inconcluso, as razões estatísticas que autorizam uma conclusão sobre as razões pelas quais, ao longo dos últimos 20 anos a taxa de homicídios e crimes violentos nos Estados Unidos é decrescente. David Mustard[9], demonstra, pela curva estatística do antes e depois de um tempo zero, onde foram adotadas leis permissivas ao porte discreto de armas por cidadãos honestos, como essa modalidade de circulação armada afetou as taxas de roubo, assalto, seqüestro e homicídio. Segue o quadro estatístico:



          Uma outra tática diversionista no discurso desarmamentista é a de recorrer ao exemplo das nações que, nos anos 90 do século XX adotaram legislação fortemente desarmamentista. Os casos mais citados, como se foram exemplos bem sucedidos do desarmamento compulsório, são os da Inglaterra, Austrália e Canadá.[10] Pela sua relevância no debate nacional, é importante desmascarar a desinformação, senão a fraude, que acompanha os esforços do governo brasileiro para validar, a qualquer custo e por qualquer meio, o desarmamento compulsório da cidadania brasileira.

          Pesquisa comparada, publicada em Toronto em 2003, e revisada em 2005, pelo Fraser Institute, qualifica como frustrados os experimentos de controle de armas na Inglaterra, Austrália e Canadá, e publica os dados que desmentem o pretenso sucesso e exemplaridade do desarmamento nestes países. Vejamos inicialmente o que aconteceu no Canadá que adotou rigorosa legislação de controle de armas em 1991 e em 1995, e lançou-se numa custosa campanha de desarmamento da sua população civil, sustentada pelo aparente sucesso do controle de armas. A falácia estatística dessa avaliação foi agora demonstrada:
 “O governo canadense usou a queda das taxas de homicídio e a queda das taxas de crimes violentos para sustentar a pretensão de que as leis restritivas das armas de fogo estavam operando a redução da violência criminal. Infelizmente para esse argumento, a taxa de homicídios estava caindo tão ou mais depressa nos Estados Unidos (figura 11), onde durante a mesma linha de tempo, mais de 25 estados introduziram leis de armas de fogo menos restritivas (NT: right-to-carry laws - leis de porte permitido). A taxa de homicídio nos Estados Unidos caiu de 10.5 por 100.000 em 1991 para 6.1 por 100.000, enquanto a taxa canadense caiu de 2.7 por 100.000 para 1.8.
O contraste entre a taxa de violência criminal nos Estados Unidos e a do Canadá é ainda mais dramático (figura 12). Ao longo da década passada a taxa canadense de violência criminal esteve basicamente estável, nos Estados Unidos no mesmo período de tempo, a taxa de crimes violentos baixou de 600 para 100.000 para 500 por 100.000.” (MAUSER, Gary A: The Failed Experiment. Gun Control and Public Safety in Canada, Australia, England and Wales. PUBLIC POLICY SOURCES. A FRASER INSTITUTE OCCASIONAL PAPER. Number 71 / November 2003, p.15. Nossa tradução.)

            É o que demonstram os quadros de Gary MAUSER[11], a seguir:

           
A situação não foi diferente na Inglaterra, onde por vinte anos se aprofundaram políticas de controle, até de todas as armas leves em 1997.  As conclusões de MAUSER, sobre essa trajetória são contundentes: verbis –
“Infelizmente, essa regulação draconiana das armas de fogo falhou totalmente. O público não está mais seguro e pode estar menos seguro. As estatísticas policiais mostram que a Inglaterra e o País de Gales estão vivenciando uma séria onda de crimes. Em contraste com o densamente armado Estados Únicos, onde os homicídios tem caído ao longo de vinte anos, as taxas de homicídio na Inglaterra que baniu as armas leves estão crescendo. Nos 1990s apenas, a taxa de homicídios cresceu 50%, subindo de 10 por milhão em 1990 para 15 por milhão em 2000.
As estatísticas policiais mostram que o crime violento em geral cresceu desde os anos 1980 e, de fato, desde 1996 está mais grave que nos Estados Unidos.” (MAUSER, Gary A: op. cit. p. 3. Nossa tradução.)
         
          Essa avaliação é, a seguir, estatisticamente demonstrada[12]:

Também na Austrália, os resultados da campanha desarmamentista são semelhantes, tanto no que refere ao alto custo do investimento público, como no que refere à sua ineficácia na solução do problema da criminalidade:
“Seguindo-se a chocantes assassinatos em 1996, o governo australiano promoveu drásticas mudanças na legislação das armas de fogo em 1997. Infelizmente essas regulações recentes não tornaram as ruas da Austrália mais seguras. A taxa total de homicídios, depois de manter-se basicamente constante de 1995 a 2001, começou agora a crescer novamente. O declínio da taxa de homicídios nos Estados Unidos permissivo às armas, contradiz a tendência que se verificou na Austrália. (...)
Enquanto o crime violente está decrescendo nos Estados Unidos, está crescendo na Austrália. Nos últimos seis anos, a taxa global de crime violento na Austrália tem crescimento contínuo. As taxas de roubo e roubo armado continuam a crescer. O roubo armado cresceu 166% em âmbito nacional.” (MAUSER, Gary A: op. cit. p. 3/4. Nossa tradução.)

Seguem as séries temporais que demonstram essa conclusão:[13]



Esses fracassos são ainda mais retumbantes quando se levam em conta os respectivos custos. A fraude desarmamentista no Canadá conseguiu a um custo bilionário, em dez anos ultrapassar as taxas de homicídio registradas pelo vizinho, e bem armado, Estados Unidos:
“O experimento canadense com a regulação de armas de fogo está se demonstrando uma farsa. O esforço para registrar todas as armas, que foi originalmente orçado em apenas $ 2 milhões (NT: dólares canadenses), está agora sendo estimado pelo Auditor Geral num patamar de $ 1 bilhão. Os custos finais são desconhecidos mas, se os custos de execução compulsória forem incluídos, o custo total chegará facilmente a $ 3 bilhões.” (MAUSER, Gary A: op. cit. p. 3. Nossa tradução.)

Na Austrália, onde foram confiscadas 640.381 armas, o desperdício custou centenas de milhões de dólares:
O confisco e a destruição de armas legais custou aos contribuintes australianos pelo menos $ 500 milhões. Os custos dos serviços policiais burocráticos, inclusive a implantação de um sistema sofisticado de infra-estrutura para o registro de armas, chegou a $ 200 milhões desde 1997. E para que? Não há nenhum impacto visível sobre o crime violento. Com esta quantidade de dinheiro público, a polícia poderia ter comprado mais carros de patrulha, reduzido o tempo dos seus deslocamentos, ou talvez adquirido melhor equipamento. É de pensar quantas vidas teriam sido salvas!” (MAUSER, Gary A: op. cit. p. 3/4. Nossa tradução.)

Os defensores do desarmamento compulsório são freqüentemente confrontados com essas evidências. E, na mesma freqüência, tratam de contorná-las mediante explicações ad hoc, as quais atentam, tão somente, contra a idoneidade do seu discurso. Exemplo disso são as alegações imprecisas e enviesadas, com que manipulam a experiência dos países que adotaram no século XX, políticas de controle e proibição ao uso de armas:
[a] Seus exemplos excluem sempre a experiência dos regimes que desarmaram populações civis, para submetê-las ao genocídio;
[b] Seus exemplos confundem propositadamente políticas de “controle”, com a “proibição” total da propriedade e porte de armas, como se fossem a mesma coisa, ou estágios de uma mesma e linear orientação política; com isso utilizam, de forma desonesta, resultados eventualmente alcançados pelo estabelecimento de meros controles burocráticos (sobre cuja adoção em bases razoáveis ninguém parece discordar no Brasil), para justificar a proibição geral do acesso aos meios de defesa (que violam o direito natural dos povos e a Constituição brasileira e são objeto de total repúdio por segmentos representativos da nossa sociedade);
[c] Seus exemplos desconsideram o passado e o presente das sociedades que utilizam como paradigmas; isolam pequenos períodos de tempo em que, por quaisquer motivos tenha ocorrido decréscimo em taxas de criminalidade, e basicamente sonegam informações sobre o aumento da criminalidade em sociedades que adotaram controles mais rígidos (a desrecomendar o exemplo, como ocorreu no Canadá, Inglaterra e Austrália)[14].

3.3.         A contradição dos pressupostos do desarmamento compulsório no Brasil, segundo as estatísticas produzidas pelos seus promotores

Já agora, quando se apresta o debate sobre o referendo, estatísticas do mesmo ISER, em associação com a Fundação Viva Rio, entidades envolvidas em militância ativa na campanha nacional pela proibição da comercialização de armas no Brasil, com apoio de instituições oficiais e sob sólido financiamento estrangeiro, liberam informações que tornam ainda mais gritantes aqueles números e mais conseqüente a sua análise.

Pelo seu compromisso político em favor do desarmamento, estas fontes de pesquisa e informação tornam-se insuspeitas em nossa análise. E, de acordo com elas, não são mais 20 milhões de armas civis que existem no Brasil. Somado, todo o nosso estoque de armas, inclusive militares, chegaria ao número de 17.010.941. Dessas, apenas 50% seriam armas legais.  Vejamos, a seguir, com mais detalhe, o que dizem os dados coletados e publicados pelos pesquisadores do “Projeto de Controle de Armas de Fogo do Viva Rio/ISER”[15]:


          Uma primeira informação relevante[16] nos informa que 50% das 17.010.941 armas supostamente existentes no Brasil seriam legais. Posto que, é totalmente subjetiva e sem qualquer controle de confiabilidade, a estimativa das armas ilegais e informais; e que é provavelmente subestimado, até por razões de segurança nacional, o volume do arsenal policial e militar; tem-se por provável que essa proporção seja totalmente superestimada.[17] Isso que, obviamente, confortaria os interesses comprometidos na política do desarmamento. Não obstante, na condição de ‘advogados do diabo’, aceitemos o número mágico: 8.518.084 armas legais no Brasil.

          Destas, 4.441.765, ou mais especificamente 26.11% do total de armas existentes, supostamente, se encontram, segundo os pesquisadores do Viva Rio/ISER[18], em mãos de indivíduos civis não criminosos – aqueles sobre cujo estatuto de posse e propriedade se volta a política do desarmamento.



Vejamos, agora, qual a eficácia da realização do plebiscito para a consecução deste objetivo, qual seja, desarmar, efetivamente, a população civil não criminosa deste país? O dado mais relevante para a resposta dessa pergunta, é saber, quantas armas são vendidas por ano no Brasil, informação que os autores deste estudo disponibilizam com base em informações fornecidas pelo Anuário Estatístico do Exército,[19] a seguir visualizadas.

         
Verifica-se, neste quadro estatístico que, em 2003, foram vendidas 14.318 armas no Brasil. Como a curva, após a aprovação do Estatuto do Desarmamento tende a manter-se estável ou decrescer, esta é uma estimativa possível do número de armas que serão vendidas no ano que se intercala entre a consulta referendaria de 2005 e o processo eleitoral de 2006.

Nem todas essas armas, entretanto, fluíram para essa categoria especial de cidadãos não criminosos, sobre a qual pesa a tentativa de proibição discriminatória da comercialização de armas e munições, que é objeto da consulta referendária. Com efeito, do estoque de 8.518.084 armas legais no Brasil, à exceção das armas de uso restrito das forças armadas contabilizadas no estudo em realce, 6.754.951 constituiria a parcela do mercado abastecida pela venda anual de armas de fogo de uso permitido, figurada no gráfico da ANEEX supra, de cujo montante os indivíduos civis não criminosos detêm 65,76% do estoque. Pode-se assim, estimar, em 9.416 o número de armas que seriam proibidas de serem comercializadas no período intercalar das duas votações, referendária e eleitoral.

Isso significa que, tomando-se por base a estimativa de custo do referendo em R$ 600 milhões, a União despenderá a significativa quantia de R$ 65.602,44 (sessenta e cinco mil e seiscentos e dois reais e quarenta e quatro centavos) para proibir a venda de cada arma que estará, assim, retirando das mãos de civis não criminosos neste período. E com isso se estará reduzindo em cerca de modestos 0,1% o estoque de armas legais[20], ou em 0,05% o estoque total de armas no Brasil[21], ao custo de se condenar a cidadania indefesa à mercê da bandidagem irreprimida e impune.[22]

3.4.         A manipulação dos fatos no discurso oficial do governo brasileiro

          Outro equívoco essencial, que denuncia a falta de pruridos na manipulação dos fatos pelas autoridades, confessadamente interessadas na passagem da proibição referendária, é a combinação de duas premissas falsas:
[1] A direta inferência do sucesso da campanha nacional do desarmamento voluntário, em sede de estatísticas oficiais que estariam mostrando queda no número de mortes por armas de fogo no Brasil em 2004; e
[2] A confusão subliminar que passam, entre a natureza dessa campanha – que se propõe recolher armas inúteis, das mãos de pessoas que não se dispõem a fazer uso – e o que está efetivamente em jogo na proibição referendária.

Como se verá, a seguir, nenhuma destas duas falácias permitem justificar a inviabilização do direito à legítima defesa, por parte de pessoas que se sentem objetivamente em situação de risco no estado atual da sociedade brasileira, e se dispõem a fazer uso das armas legais, para a preservação da sua própria vida e a dos seus familiares e, porque não, dos seus bens, quando ameaçados pela criminalidade armada.

O clima de festa em que, os Ministros da Saúde e da Justiça, divulgaram no dia 02/09/2005 o resultado positivo da campanha do desarmamento voluntário, e as ilações diretas e indiretas que retiraram deste, para os efeitos da campanha pelo desarmamento compulsório já em curso no Brasil, são sintomáticos da desconexão de causas e efeitos e da ocultação das intenções que alimentam a violação de direitos aqui denunciada.

Dados do Ministério da Saúde demonstram, nesta data, que o número de mortes por arma de fogo teve a sua primeira queda, em 13 anos, em 2004. Teria ocorrido uma redução de 3.234 mortes naquele ano. E isso foi atribuído, pelas autoridades governamentais, em caráter decisivo à campanha do desarmamento voluntário[23], e promovido de sorte a influenciar, pelo peso dos números, o resultado da consulta referendária.[24]

Quando se examina com maior vagar e espírito crítico a origem destas informações, nada autoriza essa conclusão.[25] Com efeito, os dados do Ministério da Saúde apontam que uma diminuição equivalente a 1.160 casos, ou 60% desta redução na taxa de mortalidade, está concentrada no Estado de São Paulo. E a primeira informação que se confronta às conclusões Ministeriais é que lá, a redução nos homicídios dolosos vem decrescendo cumulativamente desde 1999.

Mesmo no ano de 2004, a tendência de redução na taxa de homicídios, já se verifica desde os dois primeiros trimestres, quando a campanha pelo desarmamento voluntário sequer houvera iniciado. É o que demonstram as estatísticas oficiais da Secretaria da Segurança Pública – SP:[26]
“HOMICÍDIOS
Nos casos de homicídio registrados no Estado, comparando o 2º trimestre de 2004 com igual período em 2005, a queda é de -23%, com 536 ocorrências a menos. No período de janeiro a junho de 2004, com o mesmo semestre deste ano a redução é de -15%, com 686 ocorrências a menos.
O gráfico abaixo mostra que do 2° trimestre de 2002 até o 2º trimestre de 2005, a queda nos homicídios é de -40%, com 1.212 casos a menos.”



Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa:
[a] Que a campanha do desarmamento voluntário possa estar hoje influenciando marginalmente a queda nas estatísticas de mortalidade, é possível e provável. Que estes resultados, comprovadamente originários de uma tendência histórica que lhe é anterior, lhe sejam decisivamente atribuídos é uma manipulação grosseira da realidade material dos fatos.
[b] Que as restrições impostas à circulação das armas de fogo pelo Estatuto do Desarmamento possam igualmente, e até com alguma significação estatística, estar influenciando esta a queda da mortalidade por armas de fogo, é possível e provável. Que estes resultados sejam devidos às restrições impostas à cidadania, e não meramente decorrentes do aumento da pena e da inafiançabilidade do crime de porte de armas ilegais, ninguém pode afirmar em cima das informações disponíveis.

          Confundir esses fatos, para deles tirar uma conclusão precipitada, é intelectualmente desonesto e só pode servir como um factóide político, à justificação de uma intencionalidade obscura que objetiva a qualquer preço – inclusive pela ocultação da verdade – a sujeição da cidadania. 

Com certeza, o Estado de São Paulo é o que mais cedo e consistentemente vem adotando uma política articulada de segurança pública. As análises oficiais da Secretaria de Segurança paulista destoam da precária e claramente enviesada produção estatística que orienta a formulação da política nacional de segurança. Em estudo que prima pela compreensividade conceitual, consistência das informações, sofisticação metodológica e rigorosa confiabilidade estatística, as conclusões desmentem o ufanismo irresponsável da propaganda oficial do governo federal: verbis -        
“Depois de um crescimento contínuo desde meados dos anos 90, os homicídios dolosos no Estado de São Paulo começaram a declinar a partir de 1999. Nos últimos cinco anos a taxa de homicídios no Estado de São Paulo caiu 37%, diminuindo de 35,7 em 1999 para 22,5:100 mil habitantes no ano passado. Embora muitos não tenham se dado conta, a magnitude e a rapidez da queda colocam São Paulo no mesmo patamar de conhecidos casos de sucesso da literatura criminal internacional, como Nova Iorque, Cali ou Bogotá. Em Nova Iorque os homicídios tiveram uma impressionante redução de 66% num período de sete anos. Na cidade da Cali – para tomar um exemplo mais próximo – as taxas de homicídios caíram um quarto em nove anos e em Bogotá caíram de 80 para 23:100 mil no mesmo período.” (... p.10)
O mais provável é que políticas especificamente de segurança, atuando homogeneamente em âmbito estadual, tenham sido as principais responsáveis pela drástica queda dos homicídios em São Paulo em apenas cinco anos, enquanto os homicídios estão crescendo em Minas Gerais e caindo ligeiramente no Rio de Janeiro no mesmo período.
Trata-se de um processo relativamente recente e pouco documentado, de modo que é arriscado chegar a conclusões definitivas a esta altura; nos EUA ainda hoje se discutem as causas da redução generalizada da criminalidade no país na década passada: crescimento econômico, tolerância zero, legalização do aborto, crescimento da população prisional, mudanças demográficas, estabilização do mercado de drogas, inúmeras hipóteses foram aventadas para tentar explicar o fenômeno.
Em linhas gerais, o que se pode avançar sobre o tema é que não se trata nem de fenômeno nacional nem de processo exclusivo de São Paulo. As maiores reduções ocorreram nas cidades maiores e, dentro da Capital, a queda foi generalizada em diversos tipos de bairros e tipos de local.
Não houve necessariamente uma diminuição no grau de violência da sociedade, mas antes uma diminuição no grau de letalidade desta violência, provavelmente derivada da redução do estoque de armas de fogo em circulação. Mudanças macro-sociais como a elevação da qualidade de vida no Estado, a diminuição dos . uxos migratórios e a diminuição dos jovens de 10 a 19 anos na composição demográfica da população podem ter desempenhado algum papel no processo.
No campo das políticas públicas, para ficar apenas no âmbito da repressão, além da restrição às armas e do aumento rápido das taxas de encarceramento, a implementação da Lei Seca em diversos municípios da Região Metropolitana, a ênfase policial na captura e aprisionamento de homicidas perigosos e no combate ao trá. co de entorpecentes, desempenharam certamente algum papel para a obtenção deste resultado.” (KAHN Túlio e ZANETIC André: Papel dos Municípios na Segurança Pública Estudos Criminológicos 4, Julho 2005, p.24 - in www.seguranca.sp.gov.br/estatisticas/graficos200404/manual_estudos_ criminologicos_4.pdf)

          Destes fatos, interessa ao foco deste Parecer, clarificar que não existem, nem no sistema estatístico da Secretaria de Segurança de São Paulo, que é o mais avançado do Brasil, elementos de informação que permitam concluir que a redução nas taxas de mortalidade por armas de fogo (em especial a de homicídios) foi devida, e em que proporção: [i] às restrições draconianas do porte e da taxação confiscatória sobre a renovação do registro de propriedade das armas legais (que é uma violência aos direitos individuais); ou, [ii] à elevação da pena e ao caráter inafiançável do porte das armas ilegais (que é absolutamente legítima e ninguém, em sã consciência discorda).

Com efeito, as informações que sustentam a política criminal posta em execução pelo governo federal não permitem conclusão idônea, sobre que parcela dos resultados obtidos se deve ao desarmamento compulsório, e sobre que parcela é devida ao desarmamento voluntário. Não permitem concluir que parcela destes resultados é devida às chamadas políticas de desarmamento e cultura da paz, ou a outros fatores incidentes, como: a redução da ingestão alcoólica pela população (constatada no Estado de São Paulo); a integração das comunidades religiosas no combate ao alcoolismo e drogadiçãoo; o reforço da repressão policial; a criação das guardas municipais; e, a conscientização e cobrança da cidadania sobre o Poder Público da prioridade da política de segurança.[27]

          É, também, importante esclarecer-se que a retirada de 443 mil armas de circulação na Campanha do Desarmamento Voluntário haveria de ter algum impacto na redução dos acidentes com armas de fogo. Isso parece óbvio. Mas, em termos absolutos, esse impacto foi mínimo, e não se representa sequer na alteração do percentual das mortes acidentais no mencionado estudo do Ministério da Saúde, que as situa na faixa de 1% nos três últimos anos.

Do exposto, resulta muito provavelmente, que o mesmo efeito positivo até agora alcançado, na redução do índice de mortalidade por arma de fogo no Brasil, e talvez até com muito maior consistência e intensidade, seria alcançado mesmo sem a parafernália diversionista da chamada “campanha do desarmamento” Especialmente, se o Estatuto do Desarmamento tivesse sido efetiva e exclusivamente dirigido contra quem de direito – ou seja, contra a bandidagem – e a política de segurança pública se concentrasse na sua repressão.

3.5.         Nivelamento da cidadania e da criminalidade, governança factóide e violação de direitos
         
Não foi esse, entretanto, o comportamento que norteou a formulação da política de segurança pública neste país, modo acentuado desde o início do atual governo. Sucedendo período que primou pela omissão de uma política consistente no enfrentamento dos seus desafios, o que atualmente se avança é a tentativa de se institucionalizar uma política delinqüente de segurança pública, que se pauta pelo nivelamento e pela indiferenciação da cidadania e da criminalidade.

          Na melhor das hipóteses retornamos ao regime tutelar da cidadania, quando os nossos governantes militares postulavam, autoritária e envergonhadamente, que os brasileiros ainda não estavam preparados para a democracia.  Na pior das hipóteses o que se trama agora, travestido no paternalismo de quem não nos concede as prerrogativas da responsabilidade civil e penal, é a desagregação totalitária e desavergonhada das instituições democráticas, tendo por foco a violação clara e mortal da Constituição.

É tudo isso que está posto e fraudulentamente dissimulado na proibição da comercialização de armas e munições, à qual se pretende dar um arremedo de legitimidade em forma de ratificação popular no referendo de 23 de outubro próximo. Muito pior do que apenas uma solução inepta para resolver o problema da segurança e reduzir homicídios – exemplo típico e extremo de uma governança factóide – o que está em jogo, é essencialmente a negação do primeiro direito inerente à dignidade da pessoa humana: o da defesa da própria vida pelos meios eficazes e proporcionais à respectiva agressão. Sem esta prerrogativa não existe cidadania, e em detrimento da cidadania não se pode reconhecer soberania para a direta legislação popular.

No específico, a campanha pelo desarmamento civil no Brasil implica, minimamente, em:
[a] Nivelamento por baixo, da pessoa honesta e dos criminosos, com vantagem para estes que buscam suas armas no mercado paralelo;
[b] Discriminação funcional e econômica no acesso ao direito da legítima defesa, quando altos funcionários estatais e pessoas em condições financeiras de contratar segurança privada terão assegurada a sua defesa pessoal, enquanto o cidadão honesto pobre ou de classe média ficará à mercê da bandidagem;[28]
[c] Incentivo à violência pela eliminação da incerteza e do risco do empreendimento criminoso – num país em que apenas 1%[29] dos homicidas são condenados e cumprem a respectiva pena, e onde pelo menos 70% dos inquéritos são arquivados por deficiência da investigação – o desarme da população a submete, escandalosamente, aos desígnios de uma criminalidade impune... Contradita o axioma que “o crime não compensa”, comprometendo, nos próprios fundamentos do direito penal o sucesso de qualquer programa de segurança pública;
[d] Sujeição da cidadania à violência política organizada – inviabilizando a legítima defesa da posse, da residência ou do local de trabalho, em condições de desigualdade numérica com os respectivos agressores... Inviabiliza a resistência civil ao exercício arbitrário das próprias razões e facilita a dominação da população pela truculência de grupos de extermínio e brigadas fascistas de qualquer origem ou pretensão;
[e] Incentivo e, afinal, legitimação do contrabando de armas e munições, em sede do justo e inalienável direito de resistência civil, com a emulação do crime organizado que o viabiliza e administra.

Num país, em que a delinqüência não está nem aí, para as filigranas do registro e do porte de armas; e onde a pobreza, até pelo seu custo, já não tem acesso a uma arma registrada, o Estatuto representa, efetivamente, o desarme da classe média urbana e rural – princípio e termo da sua descidadanização. Coincidentemente, atinge mortalmente a categoria social, que tem sido sociologicamente reconhecida, pelo menos desde Aristóteles, como o fiel da democracia.

          Contra o direito de “todos” a iguais oportunidades de liberdade e vida, na concreção fática de cada momento vivido, não se pode aceitar a manipulação utópica dos valores últimos, sejam esses a construção da ordem pública ou a emulação da paz. E ainda muito menos, quando a desmascarada dualidade moral dos seus pregadores, que faria corar alguns dos mais empedernidos maquiavelistas da história do pensamento político[30], não oferece garantia alguma de que, na verdade não seja a grande responsável pelo estado de coisas que ora nos depara.

Bem se vê que às armas, em si, não pode ser atribuído o respectivo mau uso; as estatísticas demonstram que a existência delas em mãos de pessoas honestas, na realidade é inibidora da criminalidade. Disso decorre que se deve procurar outras razões que permitam explicar os aumentos verificados nos índices de criminalidade no nosso meio e mesmo na esfera internacional. Existem razões teóricas suficientes para identificar, pelo menos uma destas razões numa “cultura de guerra”, como aquela promovida pelos conceitos fundamentalistas e adversariais que opõem fiéis e infiéis, e afinal nos convocam a todos em nome destas consignas para o martírio ou a guerra. Pois é isso, não obstante, que subjaze ao contraditório discurso do desarmamento compulsório.

É o que se evidencia no discurso daqueles que pregam a paz, mas se locupletam políticamente da mais adversarial dentre as visões de mundo, fomentando o antagonismo e emulando o ódio dos “excluídos” como suposto fermento de toda mudança social. E por igual se obvia, quando se postula o desarmamento dos fazendeiros, mas se toma partido em favor da invasão das suas propriedades pelo movimento armado – ainda que o seja com facões e enxadas, foices e machados – dos “sem terra”.

Se estes fatos são articulados e se estes argumentos são ponderáveis, o que não se pode admitir, em sede de uma condição ética mínima de seriedade de propósitos e respeitabilidade intelectual, é que os fundamentalistas do lobby anti-armas, em sede de tão frágeis e contraditórios argumentos, nos impinjam a violação da Constituição e até dos princípios da lei natural que lhe são anteriores.

3.6.         Ilegitimidade do processo legislativo que resultou na aprovação do Estatuto do Desarmamento e na convocação do referendo de outubro

O pior não obstante, tragédia sobre a comédia do nosso tempo, é que se aprestam a consumar, em regime de urgência, a aprovação da excrescência referendária, e com o apoio de uma inadvertida ou comprometida maioria congressual.

Hoje já se sabe como este apoio parlamentar foi articulado e pago na aprovação dos projetos de interesse do governo federal entre 2003 e 2004[31], entre os quais o Estatuto do Desarmamento. Amanhã, quando fecharem as fábricas de armas de defesa existentes no Brasil, e premidos pela catástrofe tivermos que importar, oficial ou oficiosamente os artefatos da nossa defesa pessoal ou da nossa resistência civil, se saberá talvez como e por que agiram, no mesmo sentido, algumas entidades da sociedade civil milionariamente financiadas desde o exterior que ora militam nessa pretensão de lesa-cidadania.[32]

Por este tempo, resta apenas, ao autor e aos subscritores deste Parecer, registrar os fatos, esclarecer as conseqüências e manifestar, em descarrego de consciência, a própria contrariedade.

Em artigo publicado no site nacional do Jornalista Diego Casagrande, exatamente no dia 23 de outubro de 2003, este parecerista já denunciava as contradições legais e inconstitucionalidades de diferentes dispositivos de projeto que, afinal, veio a ser aprovado, na forma da Lei 10.826 em 22 de dezembro daquele ano. Na lavra daquele artigo:

“O Estatuto do Desarmamento obstaculiza à cidadania o exercício do direito constitucional da legítima defesa da vida – ao ponto de instituir sua virtual negação – eis que  condiciona a obtenção do porte de arma a uma decisão discricionária da autoridade policial, que avaliará subjetivamente da necessidade do respectivo uso pela pessoa. Além de rebaixar, o que é uma prerrogativa constitucional à condição de mera e particularizada concessão do poder público, o Estatuto impõe discrimes injustificáveis na respectiva autorização. Vivendo-se numa sociedade, onde a regra é ser assaltado, mesmo em local civilizado e a qualquer hora do dia ou da noite, condicionar-se a concessão do porte apenas a pessoas que correm ‘risco profissional’, ou residem em ‘local afastado’, representa odiosa discriminação do cidadão comum que, no exercício do seu direito de ir e vir, é assaltado no seu próprio bairro, a caminho de casa, da escola, do trabalho, quando vai às compras ou busca o próprio lazer.
Mais do que isso, a penalização do porte de arma, legalmente adquirida e registrada, introduz contradição insolúvel na sistemática do direito penal brasileiro. No meu entender, trata-se de uma sanção genérica e rigorosamente inaplicável, por exceção subjetiva de ilicitude. Em síntese, trata-se de uma lei natimorta.
A questão de mérito, bem posicionada é a seguinte. Ao cidadão comum que, por quaisquer e circunstanciais razões, possua justo receio de ser agredido ou assaltado numa condição normal e corriqueira da vida, impõe-se uma de duas alternativas: enfrentar temerariamente o risco, sem qualquer proteção efetiva; ou munir-se responsavelmente dos meios capazes de lhe assegurar condições mínimas de defesa pessoal. Em que pese o argumento pífio de que, contra a surpresa do assalto não existe defesa possível, não há fundamento jurídico, ou sequer razoabilidade, em negar-se à cidadania o direito de prevenir-se contra o ilícito, e municiar-se dos meios eficazes à respectiva dissuasão ou revide. Aliás, o mesmo argumento, do lobby anti-armas, se aplicado na escala social mais ampla da política pública anti-terror – contra cuja irrupção, no cotidiano da vida civilizada, também, se diz que não existe defesa possível – implicaria em negar-se, ao próprio Estado, o respectivo direito/dever de polícia, e à política de segurança pública qualquer iniciativa de prevenção contra o crime.
Assim, portanto, se alguém, que não possui o porte exigido pelo Estatuto e a legislação de controle de armas, circunstancialmente vir-se obrigado a transitar por local ermo ou, por quaisquer razões de ordem meramente subjetiva, cultivar justo receio de ser assaltado, e disso prevenir-se lançando mãos de um revolver, configuraria o caso de uma condição jurídica paradoxal: [a] se fosse detido e flagrado numa batida policial, poderia ser processado e condenado pelo porte ilegal de arma; mas, [b] se, ao invés de encontrar a polícia, fosse efetivamente assaltado a mão armada, e viesse a utilizar-se do revolver, para revidar a agressão, matando o assaltante, seria, com certeza, absolvido por legítima defesa. Principiologicamente, essas duas alternativas constituem uma clássica e indecorosa petição de princípios. Não pode a lei penalizar um crime menor, o qual, não obstante, concorre para um ilícito maior, que a própria lei absolve. Se a lei me autoriza a usar de arma de fogo para revidar assalto ou agressão a mão armada, até mesmo matando em legítima defesa, disso decorre que, se eu tiver justo receio de ser assaltado, a lei, por lógica decorrência, me autoriza a andar armado. Configura-se aqui, o caso de uma condição putativa de legítima defesa, que é exceção de ilicitude para o porte de arma. O contrário representaria a uma condenação antecipada das próprias vítimas ao jugo da violência e da criminalidade.  
Trata-se de fundamento jurídico, que poderia socorrer ao próprio defensor e relator do Estatuto do Desarmamento, deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, na defesa do seu constituinte José Rainha – com o devido desconto da presunção de inocência de um conhecido líder de invasões de terra – o qual sentindo-se subjetivamente ameaçado, foi preso e indiciado por porte ilegal de armas em região de conflito fundiário. De qualquer forma, é também paradoxal e sintomático, que o mesmo deputado Greenhalgh, que defende o porte de arma para os integrantes do MST, pretenda negar, em forma de legislação abrangente, aos cidadãos pacatos e cumpridores da lei, deste país sitiado pela insegurança pública, o direito à legítima defesa da vida. Mais significativo, ainda, ao ponto de indiciar virtual conspiração contra o Estado de Democrático de Direito, é esta combinação espúria de dois pesos e duas medidas, que os integrantes do lobby anti-armas e defensores da anti-política de segurança pública avalizada pelo Governo Lula propugnam: direito penal mínimo para a criminalidade e direito penal máximo contra o cidadão honesto, pacífico e trabalhador. Defendem o direito ao uso de drogas (política da redução de danos), defendem o direito à invasão de propriedade, promovem a cultura da luta de classes e a solução de conflitos sociais ao arrepio do devido processo legal, dispõem-se a legitimar organizações criminosas e terroristas atuantes em território nacional ou nas nossas fronteiras, são coniventes, por omissão ou comissão, à violação de direitos humanos praticadas por Estados delinqüentes, comprometendo nossa soberania em inaceitáveis relações de ‘compadrazgo’, mas querem punir com prisão inafiançável ao cidadão que, em meio à guerra civil da miséria que administram, procura responsavelmente, preservar-se a sua vida e o arrimo de sua família.
Neste contexto, até pela intenção que revela no seu próprio nome, o Estatuto do Desarmamento representa a imposição de uma capitulação incondicional à população civil em face da criminalidade espontânea e organizada que nos cerca. É, por isso mesmo, um monstrengo legislativo... e de conseqüências mais lesivas à cidadania e com certeza mais graves, na erosão da institucionalidade democrática, do que o foi o famigerado AI-5.” (AYDOS, Eduardo Dutra: O DESARME DA CLASSE MÉDIA. Artigo publicado no site nacional do Jornalista Diego Casagrande www.diegocasagrande.com.br em 23/10/2003.)
         
Na seqüência dos debates legislativos que antecederam à aprovação do Estatuto, a nivelação total do crime e da legítima defesa, da bandidagem e dos cidadãos não-criminosos, dos detentores de armas ilegais e dos portadores de armas legais, impondo a ambos, indistintamente, a inafiançabilidade do crime de porte de armas, foi abrandada. Não obstante essa concessão marginal, o Estatuto aprovado consagrou o espírito do projeto original e assim persiste válida toda a análise elaborada ao tempo da sua gestação.

Sabe-se agora que os projetos de interesse do governo federal foram turbinados pelos saques da corrupção parlamentar nas contas do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza. A aprovação do Estatuto do Desarmamento nas duas casas do Congresso não é exceção: coincide com o período do seu maior fluxo de caixa.[33]


III – DOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS VIOLADOS PELA REALIZAÇÃO DA CONSULTA REFERENDÁRIA DE 23 DE OUTUBRO DE 2005.

Emula-se, neste Parecer, o dever indeclinável da Jurisdição, eis que, nas circunstâncias acima delineadas, conhecer dos fatos, é sopesar a irresponsabilidade gestionária e coibir o abuso do próprio direito, na discricionariedade reconhecida ao exercício da autoridade pública.

Não podem, legisladores e administradores, atentar contra os princípios gerais da economicidade, da finalidade e da moralidade, fazendo promulgar ou executar políticas públicas de alta onerosidade e com resultados que antecipadamente se demonstram pífios, ou adotando rumos de ação e comportamento funcional que contradigam formal e materialmente os mais fundamentais preceitos da Constituição Federal.

4.     Da violação dos princípios fundamentais da Constituição Federal no referendo de 23 de outubro de 2005

A Carta Constitucional de 1988 enuncia no seu Título I, Artigo 1º, I a III, e parágrafo único, pelo menos três princípios fundamentais, os quais são diretamente malferidos pela realização do referendo popular, como autorizado pelo Decreto Legislativo 780, promulgado pelo Senador-Presidente do Senado Federal em 07 e julho de 2005, e convocado mediante a Instrução 87/Resolução 2.230 do Egrégio Tribunal Superior Eleitoral para realizar-se em 23 de outubro do corrente ano. São estes, os princípios da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Indiretamente, há de consignar-se igualmente o malferimento dos outros dois princípios fundamentais, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do pluralismo político. Circunstâncias essas que situam os atos do Poder Público envolvidos no referendo, objeto deste Parecer, num patamar máximo de lesividade aos preceitos fundamentais da Constituição pátria.

4.1.         Da violação do princípio da soberania

          O princípio da soberania está enunciado no Título I, Art. 1º, I e, no que refere ao objeto da presente ação, está regulado pelo seu Parágrafo único, além do art. 14, caput, todos da Constituição Federal, como segue:
“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:
I – a soberania (...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...) II – referendo”.
         
A norma regulamentadora da Lei 9.709/1998, por sua vez e no que refere ao objeto da presente ação, explicita as condições legais da efetividade deste princípio nos seguintes termos:
“Art 1º. A soberania popular é exercida por sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, nos termos desta Lei e das normas constitucionais pertinentes, mediante:
(...) II – referendo;
Art 2º. Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
(...) § 2º. O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.

Está bem claro que o Estado Democrático de Direito no Brasil está fundado no princípio da legalidade, cujo nível máximo é a supremacia da Constituição que, pelos seus termos, define os limites da soberania e disciplina as condições da sua legitimação. Disso resulta que o referendo de 23 de outubro de 2005 se pretende realizar ao arrepio da Lei e das normas constitucionais pertinentes.

Primeiro, porque pretende, pela ratificação de legislação ordinária, derrogar dispositivos da Constituição Federal.

Segundo, porque viola diretamente preceitos fundamentais da Constituição Federal, os quais não poderiam sequer ser modificados no âmbito da competência do Poder Legislativo, porque insuscetíveis de Emenda (referência aos incisos I, XXII, XXIII, e à inteligência do inciso XVI, do art. 5º da Constituição Federal, os quais foram elevados à condição de “cláusulas pétreas”, por força do que dispõe o seu art. 60, § 4º, inciso IV). 

4.2.         Da violação do princípio da cidadania.

O princípio da cidadania remete ao exercício da parcela do poder popular, inerente a cada indivíduo nacional e está normatizado no Título II, Capítulo IV da Constituição Federal, correspondendo ao dispositivo do seu art. 14, cujo malferimento pela consulta referendária já foi acima evidenciado. Não obstante, há que se evidenciar o modo como, especificamente, este malferimento solapa os fundamentos jurídicos que autorizam e legitimam o exercício desse poder.

São pressupostos da cidadania, os direitos e garantias, cuja inviolabilidade a Constituição estende, também, aos estrangeiros em território nacional. Assim, para ficar apenas nos fundamentos enunciados pelo caput do art. 5º da Constituição,[34] são inerentes à cidadania o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Todos estes direitos fundamentais se encontram comprometidos, na esteira da proibição, que se pretende ratificar mediante o referendo de outubro.

Dentre estes, desponta como primacial, até pela ordem do respectivo enunciado no texto constitucional, o direito à vida. É irretorquível, que a inviabilização da legítima defesa pessoal, submetendo-se a cidadania aos desígnios do azar e ao arbítrio da criminalidade, descontrolada e impune em nossa sociedade, viola o seu direito à vida e por decorrência, direta ou indiretamente, todos os demais enunciados no caput do art. 5º da Constituição.

4.3.         Da violação do princípio da dignidade da pessoa humana

          Tem-se por certo que a dignidade da pessoa humana é um sobre-princípio, origem e justificação última de todo o elenco dos direitos individuais. Da violação destes, por conseqüência, resulta malferida a dignidade humana. Não obstante, há um campo de considerações sobre atos e omissões que, pertencem à essência deste princípio e lhe devem ser imputados enquanto tal. Refere-se à dimensão da escolha moral, sob o influxo da lei natural que concerne a todos os homens.

          É neste exato sentido, que a nulificação do direito de defesa, intrínseco à proibição manejada na consulta referendária, malfere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Negue-se a um pai de família o direito de optar pela reação possível, desigual e quase suicida, no enfrentamento dos criminosos que o assaltam, que vilipendiam sua esposa e filha, e lhe estarão retirando o direito de assumir a própria humanidade nesta situação-limite. E lhe estarão recusando mais, o sentido da existência, como reação necessária ao espezinhamento da própria condição humana; a opção consciente pela esperança última, ainda que este caminho lhe seja fatal; a possibilidade de dar-se dignidade à sua própria morte, como um gesto derradeiro em defesa da vida!

          Não se submete, por outro lado, a validade do princípio da dignidade humana, a quaisquer éticas de não-violência que, sob inspiração religiosa e equivocada aplicação política, pretendam oferecer ao combate da criminalidade homicida o martírio da população civil brasileira. Até porque, na própria formulação dos seus promotores, essa ética tem se apresentado inconsistente e contraditória: desautoriza o direito de resistência individual, mas subscreve o direito de resistência social. Desconhece, portanto, que a sociedade é essencialmente constituída pelas pessoas que a integram, cuja dignidade é anterior, origem e fundamento da própria comunidade.

          Além disso, é pressuposto político de reconhecimento universal, que a concreção da dignidade humana exige uma hierarquização de meios para se atingir as finalidades precípuas da segurança e da paz.  Há que se tentar resolver os conflitos emergentes nessa caminhada pelo discurso, depois pela negociação e, só quando estes recursos falharem, pelo uso da força proporcional necessária.

Até mesmo os mais empolgados militantes da não-violência reconhecem essa hierarquia contingente de meios a serem manejados para a consecução da paz. Assim, na obra intitulada “A Firmeza Permanente”, editada sob os auspícios do então ecumênico Secretariado Justiça e Não Violência, que inspirou o atual Secretariado de Justiça e Paz da CNBB, e com apresentação de Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns, entre os 17 “princípios da não violência”, formalmente enunciados, reza o de número 16: “Se você não puder ser um “não-violento”, seja violento. O que você não pode ser é omisso.”[35]

A política do desarmamento compulsório contraria essa hierarquia de meios, e o princípio de realidade e respeito à dignidade humana que ela consagra. Decreta a impossibilidade da opção contingencial pela violência, impõe à cidadania a inevitabilidade do próprio martírio. Retira, por isso, aos que se disporiam a tanto, a dignidade do próprio sacrifício; e impede a liberdade de opção de outros, pelo uso dos meios eficientes que, o poderiam tornar desnecessário. Não se concebe violação mais essencial da dignidade da pessoa humana.

4.4.         Da violação do princípio da livre iniciativa

A proibição da comercialização de armas de fogo no Brasil discrimina, também, a livre iniciativa (CF art. 1, inciso IV) dos produtores e comerciantes brasileiros, e por aí os valores do trabalho, como atividade econômica nacional.

O referendo não proíbe a compra, no exterior, de armas e munições. Cabe aqui uma interrogação. Trata-se de uma lacuna que será preenchida por regulamentação posterior? E neste caso, haveria que se denunciar o aprofundamento ainda maior da violação de direitos individuais, já intrínseca no patamar explícito das proibições referendárias. Ou se trata de privilégio à indústria e à empresa estrangeira, cujos governos e instituições financiam milionariamente a campanha pelo desarmamento no Brasil? E neste caso, haveria que denunciar,à evidência, a conseqüência lesiva à indústria nacional e ao mercado interno, malferindo os valores subjacentes do trabalho e da livre iniciativa. 

Desnecessário responder a essas especulações para concluir-se da absoluta inconstitucionalidade da proibição referendária. Eis que inviabiliza, em território nacional, o exercício de uma atividade econômica, cuja legitimidade se reconhece na comunidade das nações. Mais do que isso, veda a comercialização em território nacional de artefatos, cuja aquisição não se proíbe imediatamente aos cidadãos e às empresas brasileiras, condicionando-a, no entanto, à realização mediante entrepostos no exterior.

Regredimos nisso, em termos de política econômica, aos termos do decreto real no Brasil colônia que, sob o pretexto da abertura dos portos às nações amigas, assegurou à Inglaterra o efetivo privilégio da comercialização de produtos estrangeiros ao povo deste além mar.[36]

4.5.         Da violação de outros direitos e deveres individuais e coletivos

A proibição posta à ratificação pelo referendo de outubro de 2005 viola direta e literalmente o caput e os incisos I, XXII, XXIII, e a inteligência do inciso XVI, do art. 5º da Constituição Federal, os quais foram elevados à condição de “cláusulas pétreas”, por força do que dispõe o seu art. 60, § 4º, inciso IV

4.5.1.   Da violação do princípio da igualdade

Pelo disposto no art. 35 in fine do Estatuto do Desarmamento, objeto da consulta referendária, as entidades previstas no seu art. 6º poderão continuar comercializando armas e munições. Nestas entidades se incluem os aparelhos do Estado policial, mas também as pessoas que os integram, além de empresas de segurança e clubes de tiro.

Em síntese, a norma a ser ratificada, restringe o direito de legítima defesa, pelo uso da arma de fogo, privilegiadamente, aos agentes estatais, aos detentores  de poder econômico que lhes permita a contratação de empresas de segurança e aos desportistas.

Nada contra estes últimos, mas sua presença no rol dos legitimados detentores do instrumento letal é sintomática da completa desfiguração, material e formal da igualdade constitucionalmente assegurada em face do bem comum da segurança pública. A partir de agora, se pretende colocar acima e além do objetivo primacial da incolumidade pessoal e patrimonial da cidadania, ou seja, acima e além do uso instrumental à legítima defesa da vida, o uso desportivo das armas de fogo... É patético!

Tal disposição é evidentemente discriminatória, incidindo em violação do inciso I, do art. 5º da Constituição Federal: “I – Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”

Com efeito, a proibição contida no texto da consulta popular estabelece uma diferença essencial entre categorias de indivíduos nacionais, discriminando-as em razão de um reconhecimento diferenciado do que não admite discrimes, a sua necessidade essencial de autodefesa. Tratando-se do bem público da segurança, é inaceitável limitar-se o exercício do direito de defesa armada aos indivíduos civis, pelo seu status funcional, disponibilidade de recursos para comprar pacotes de segurança privada ou pertença a associações desportivas. Até porque isso viola, também, o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, enunciado no art. 3º, inciso 4º, da Constituição Federal: “– promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Já no art. 144, caput, da Carta de 1988, o Legislador constituinte elevou a segurança pública à condição de direito de todos e dever do Estado. Integram, portanto, os objetivos da consecução do bem comum, como preservação da ordem pública e da incolumidade da pessoa e do patrimônio.

Guardando a origem, deste conceito, na noção aristotélica da justiça legal, essa igualdade de todos no direito e na responsabilidade da segurança pública, não é, abstratamente, um bem do todo, passível de ser idealmente formulado, em sede de estatísticas genéricas e às custas da renúncia e da vitimização de muitos. Não, trata-se, concretamente, de um bem todos e cada um, capaz de ser, em absoluto, individualmente reivindicado.

Nesse sentido, a melhor doutrina:
“Se todos possuem a mesma dignidade, a igualdade fundamental entre os membros da comunidade não é proporcional, mas absoluta.
As conseqüências extraídas deste conceito são radicais: para a justiça social, os seres humanos, considerados como pessoas, são iguais e, portanto, toda desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, como é o caso de suas necessidades materiais básicas, deve ser afastada.
A justiça social pois, suprime toda sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os outros, ou seja, cada um é sujeito de direito na mesma medida em que reconhece o outro como sujeito de direito. A recusa no reconhecimento destrói a comunidade dos sujeitos de direito. Aquele que não é reconhecido como sujeito de direitos no interior da comunidade, também não é sujeito de deveres. Na medida em que os demais membros não reconhecem os direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer os direitos dos demais.” (BARZOTTO, Luis Fernando, Justiça Social: Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Mimeo, Faculdade de Direito, UFRGS, 2004.)

Ao proibir a compra e o municiamento de uma arma de defesa, o referendo de outubro viola o direito à vida, primeiro e mais fundamental, enunciado no caput do art. 5º da Constituição Federal. Por essa via, também, malfere a dignidade das pessoas civis, proibindo em absoluto, o seu acesso aos meios necessários à efetiva participação nesta tarefa coletiva, da construção de um ambiente de segurança pública, que a Constituição lhes assegura e determina. Pior do que isso, traveste esse princípio reconhecido de justiça social, numa condição de justiça particular, tornada acessível a poucos e, exclusivamente, pelos privilégios de status e poder econômico.

4.5.2.   Da violação do princípio da propriedade e do direito adquirido

          Embora o conteúdo normativo da consulta referendária não proscreva a propriedade privada de armas de fogo, pela inviabilização do seu uso social, a par do confisco tributário instituído pelo Estatuto do Desarmamento, acabará justificando a respectiva expropriação. Há implicações principiológicas nessa linha de conseqüência, que não podem ser desconhecidas. Elas remetem à conhecida sentença de Benjamin Franklin: “Quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem serão as outras propriedades!”

          Bem sabido que, pelo inciso XXIII do art. 5º da Constituição: verbis - a propriedade atenderá a sua função social”. Não existe função social mais intrínseca e legitimada de uma arma que o seu uso para defesa pessoal e patrimonial, individual e comunitária. Mas para isso, depende o proprietário da reposição da munição, cuja validade e efetividade é limitada no tempo. Impedido de adquiri-la,o detentor do justo título, perde a propriedade da arma a sua função social.

Por essa via, a pretensão normativa da consulta referendária compromete essencialmente o próprio direito de propriedade (constitucionalmente reconhecido, nos termos do inciso XXII do art. 5º da Constituição) malferindo-se, igualmente, o direito adquirido ao seu uso social (porque não é uma via de mão única o que dispõe o inciso XXIII do art. 5, CF). Flagrante a violação, por outro lado, no caso dos atuais proprietários de armas de fogo, ao preceito fundamental instituído pelo inciso XXXVI do art. 5º da Constituição: verbis - “a lei não prejudicará o direito adquirido...”

3.5.3     Da violação do direito à liberdade

          Suscita, o debate sobre o referendo das armas, discussão sobre o alcance do direito à liberdade. Em que medida abrangeria este, o direito das pessoas de se defenderem das agressões da criminalidade mediante uso de armas de fogo?

Desde logo, quer nos parecer, essa é uma discussão vencida. A Constituição brasileira e sua legislação infraconstitucional reconhecem o direito à legítima defesa (CF art. 5º, LV, Código Penal art. 25). Ademais, a Constituição Federal dispõe, ainda que indiretamente, sobre o direito ao cidadão brasileiro de possuir e portar armas. É uma conclusão que se impõe da hermenêutica rigorosa do inciso XVI do art. 5º da Constituição Federal: verbis – “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público...”

Trata-se aqui, de uma regra de exceção. Excetuam-se das reuniões pacíficas em locais abertos, os cidadãos armados. Por lógica conseqüência, fora destas reuniões pacíficas prevalece, como regra geral, a legitimidade do porte de armas pela cidadania. Pode a lei regulamentar esse direito, mas jamais poderá nulificá-lo como dispõe, na prática, o art. 35 do Estatuto do Desarmamento.

4.5.3.   Da violação do princípio da subsidiariedade, que regula a atuação do Estado no campo da segurança pública

Malfere, igualmente, o conteúdo normativo que se pretende ratificar no referendo de outubro, o princípio da subsidiariedade, o qual, desde logo, assegura a todos da cidadania, o direito e a responsabilidade e, por decorrência, o dever de ação e os meios hábeis para concretizar a própria vida e a segurança pública, seja como preservação da ordem pública, seja como preservação da incolumidade das pessoas.  

Trata-se aqui, de um dever de todos e cada um, ao qual se acrescenta o dever o Estado. Condição geral da intervenção estatal em nosso regime constitucional, o princípio da subsidiariedade serve, não apenas para socorrer os particulares onde eles não podem realizar, de per si, o interesse geral como bem comum, mas, também, para, na mesma medida, desobrigar o Estado da eventual falência dos particulares na esfera específica da sua capacidade de ação.

Descabido seria, no regime constitucional da responsabilidade subsidiária do Estado, exigir-se deste, por exemplo, indenização pela falência de uma empresa privada, ou pelas conseqüências da criminalidade que atinge o cidadão comum. Quando muito, haveria de responder solidariamente, pela sua parte omissiva ou comissiva na produção desses efeitos.

Não obstante, quando o Estado, intencionalmente, obstaculiza a atividade comercial de uma empresa ou o acesso da cidadania à legítima defesa, viola o princípio da subsidiariedade e se torna direta e exclusivamente responsável pelo dano.

Em sede deste axioma jurídico, a proibição intentada pela consulta referendária expõe as já combalidas finanças estatais à legítima reivindicação indenizatória das vítimas, sejam empresas que atuam no setor, seja a cidadania objeto de agressão criminosa. Não haverá recurso para tanta demanda. E o resultado, mais uma vez, e por mais essa razão, será o descrédito do bom direito.

4.6.         Da desconstrução do ordenamento jurídico-constitucional

Malferindo-se os princípios da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, desconstruído resta todo o ordenamento constitucional, que deles se nutre, nos seus fundamentos essenciais, e deles retira a sua consistência moral, legitimidade política e possibilidade jurídica.

Não há sofista capaz de provar o contrário, a menos que se tenham por consumadas as três traições históricas, que a jornalista membro do Parlamento Europeu, Pilar Rahola, em conferência pronunciada no Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em janeiro de 2005, atribuiu ao movimento de esquerda européia, cega, surda e muda em face do genocídio comunista, mesmo no após II Guerra, e indisfarçadamente anti-semita: [a] a morte da inteligência; [b] a morte da informação; e, [c] a morte da liberdade.

São imputáveis da mesma patologia social, os segmentos da esquerda brasileira, que se articulam no esquema de poder, cujos tentáculos conhecidos envolvem a corrupção da democracia, nisso que se tornou conhecido como a “farra do mensalão”, e mais aquele, que aqui nos preocupa diagnosticar: a desconstrução da cidadania, cujo carro chefe é o referendo do desarmamento compulsório. 
         
          Por primeiro, tripudiam da nossa inteligência. Querem nos fazer acreditar que, gastando seiscentos milhões de reais, para impedir que se agregue 0,05% de armas ao estoque existente no País, se estará fazendo mais pela segurança pública e a dignidade humana, do que aplicando essa verba, por exemplo, na melhoria das condições do nosso sistema prisional, e assim na recuperação dos apenados, ou em pessoal, equipamento e logística das forças policiais.

          Por segundo, manipulam informações, até o ponto de, pela repetição, pretenderem dar credibilidade ao que verdade não é. Sabe-se que o sistema estatístico nacional, ao tratar de matéria criminal, é ainda rudimentar, os estudos técnicos, em que se baseia a política de segurança pública em execução neste País, são toscos e inconclusivos. Não existem informações confiáveis e idôneas, que permitam dizer quantas vidas foram salvas no Brasil pelo fato das pessoas agredidas terem reagido à agressão. Tal é o descrédito da segurança pública neste país, que a maioria das pessoas que conseguem safar-se, com sucesso, de uma agressão criminosa, não registram essa ocorrência. Não obstante, o Senador Renan Calheiros, sente-se autorizado a afirmar que "de cada 16 reações armadas, 15 terminam com a morte da vítima". Obviamente, o Senador não revela a “fonte” dessa informação, porque esta não existe. E se existisse, haveria de refletir, quase tão somente a contagem das reações mal sucedidas.

Por terceiro, o que é mais grave e insidioso. Sob o pretexto de combater a criminalidade, nos exigem renúncia de direitos e tolhem, efetivamente, a nossa liberdade.

Já nesse último aspecto, e trazendo o debate para o caso concreto em realce, a lavra do eminente jurista Celso Bandeira de Mello, é por definitivo esclarecedora:

“8. Trata-se de saber, então, se, ao lume dos valores constitucionais, cabe considerar preferível que os marginais andem armados (como o fazem ao arrepio da lei), oferecendo toda espécie de riscos para os cidadãos de bem ou se é preferível que estes últimos andem desarmados, condenados à indefensão perante os bandidos, sob o argumento de que assim prevenir-se-ão os riscos de vida a que podem se assujeitar no confronto com os marginais, bem como os malefícios resultantes da eventual captura de sua arma e consequentemente abastecimento dos criminosos por esta via.
9. Parece óbvio que o preferível, em vista dos valores constitucionais, é a opção que prestigia a liberdade de autodefesa se a defesa estatal não lhe é satisfatoriamente outorgada.
Nada colhe juridicamente o argumento de que a ausência de arma de fogo em mãos do cidadão o expõe a menor risco de vida, pois esta escolha deve caber a ele próprio, em nome de sua dignidade pessoal, e não aquele que o ameaça, o qual, como muitas vezes tem acontecido, pode agredi-lo, torturá-lo, matá-lo e vilipendiar sua família, mesmo não encontrando qualquer reação armada.
Também não impressiona a alegação de que o bandido pode despojá-lo da arma e assim se abastecer dela. Desde logo, o assaltante já comparece abastecido e é graças a isto que rende sua vitima. Acresce que ninguém, por mais ingênuo que seja, imaginará ser a esta a fonte significativa de abastecimento de armas de fogo dos marginais. É sabido e ressabido que o contrabando é que traz e tem trazido abundante armamento para a criminalidade e não só de armas leves, as únicas que se encontram em mãos dos cidadãos ordeiros, mas até mesmo, esporadicamente, de armas proibidas, privativas das forças armadas. Além do contrabando, até mesmo maus policiais são responsáveis pela comercialização de armas com criminosos. Portanto, não é relevante a menção à obtenção de armas em assaltos a cidadãos comuns.
Sem embargo, ainda que tal alegação tivesse o peso que não tem, descabe ria atribuir-lhe valor jurídico suficiente para, sobre tal fundamento, desarmar o cidadão. É que para facilitar sua tarefa de desarmar os criminosos o Estado não pode submergir direitos básicos do cidadão, nem expô-lo aos riscos da indefensão ou simplesmente à dolorosa sensação psicológica de total desguamecimento ante as acometidas dos marginais. À toda evidência valores constitucionais básicos não cedem passo a considerações pragmáticas.” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. PARECER, sobre o projeto de lei do Estatuto do Desarmamento. São Paulo, 07 de outubro de 2003, cfr. colacionado em ADIN 3535, fls. 12).

É inviável, à luz dos preceitos fundamentais que amparam a construção histórica do Estado Democrático de Direito, agasalharem-se as razões pragmáticas com que se pretende justificar a política do desarmamento compulsório da cidadania. Mais ainda, quando se trata de considerações pragmáticas totalmente destituídas daquilo que lhes poderia dar alguma credibilidade enquanto tal, pois não respeitam qualquer medida de necessidade ou ponderação de custos e resultados.

Como já se viu, o caso do referendo de outubro de 2005, é paradigmático de uma absoluta irrazoabilidade. Caracteriza-se pela total desproporção de meios e fins, entre o dispêndio com a sua realização antecipada às eleições nacionais e o resultado prático da eventual ratificação do seu conteúdo normativo. Contabiliza um impacto próximo de zero na diminuição das armas existentes e do seu impacto sobre os índices de criminalidade, contra seiscentos milhões de reais que poderiam ter uso muito mais eficaz para a mesma finalidade. E, nisso, se denuncia uma outra lógica, que faz uso a qualquer preço do aparelho e da finança pública, mas para a consecução de objetivos que não lhes concernem e muito menos à ordem institucional vigente.

Importa, assim, na percepção clara do desvio de finalidade, que a política do desarmamento compulsório maneja na esteira da sua própria ilegalidade, concluir essas razões de mérito. E o fazemos em consonância com o douto parecer de Celso Bandeira de Mello:
“Como resulta do exposto até agora, não há nem de fato e muito menos de direito a razoabilidade, a plausibilidade necessária para a imposição das limitações residentes no projeto de lei “sub examine”, visto que com elas se submergem liberdades e garantias fundamentais, numa tentativa de atacar males sociais que o Estado teria de atalhar por outros meios, ao invés de buscar a via supostamente fácil — e de resto ineficiente para atingir os fins propostos — de desarmar os particulares, com o que, na prática terminará, mesmo não sendo esta sua intenção, por eximir a marginalidade dos azares de um confronto com quem pretendesse vender caro sua vida, sua honra, seu patrimônio e a integridade de seus familiares.
Sem embargo, por tudo quanto se expôs e considerou, dito projeto é manifestamente incompatível com a Constituição FederaL De sorte que, ao indagado na Consulta, cabe responder:
É desenganadamente inconstitucional o projeto de lei n° 1.555, de 2003 (Do Senado Federal), que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas — SINARM, define crimes e dá outras providências, tanto no que respeita à proibição de comercialização de armas de fogo quanto no que se refere aos mencionados excessos restritivos em relação ao porte de arma...” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. PARECER citado, fls. 16).


ISSO POSTO,

Ø     Quando se está prestes a investir a significativa importância de seiscentos milhões de reais – mais do que o governo federal investe durante um ano nos fundos de aparelhamento da segurança pública – na batalha desigual de uma consulta referendária emulada pela propaganda oficial, e redundante ao poder de fazer as leis de quem a convocou;

Ø     Quando esse monumental desperdício de recursos escassos, extraídos ao enfrentamento efetivo da criminalidade que, supostamente, se visa coibir, denuncia, tão somente, o envolvimento direto da cidadania na violação dos seus próprios direitos inalienáveis, pela imposição do desarmamento compulsório, às próprias vítimas atuais e potenciais, do crime organizado e da criminalidade espontânea e anárquica que viceja na esteira da sua impunidade;

Então nos defronta uma situação-limite, que nos impõe, e haverá de nos cobrar, no presente ou no futuro, a todos os brasileiros em sã consciência e às instituições nacionais no exercício das suas prerrogativas, o cumprimento do dever acima e além do exigível...

E aqui, se evidencia, objetivamente, por parte de um governo que promove e articula essa insensatez política, travestida de aberração jurídica, a violação máxima da autoridade investida ao juramento da Constituição Federal, configurando crime de lesa-pátria, por traição essencial à cidadania do povo brasileiro.

          É nosso parecer, que o caminho ainda aberto para se opor limite a essa lesividade é a argüição de descumprimento de preceito fundamental, perante o Supremo Tribunal Federal, com pedido liminar de suspensão do processo referendário em curso até decisão no mérito.

          Com a palavra e a iniciativa os legitimados sujeitos dessa prerrogativa processual-constitucional, em especial:
·       O Excelentíssimo Senhor Governador do Estado do Rio Grande do Sul, que tem mais de 80% da sua população contrária e será economicamente prejudicado pela proibição referendária;
·       Os partidos políticos nacionais, que tem a missão de assegurar o pluralismo político e a vigência das instituições democráticas;
·       As entidades nacionais das classes produtoras, cujas bases empresariais – em especial os pequenos e médios empresários – serão diretamente afetados na competitividade global dos seus esforços produtivos pelo imposto adicional da segurança privada;
·        As entidades associativas nacionais que já demonstraram sensibilidade a essa questão (Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas – ANPCA – e a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL) e que poderão encontrar, na via do que aqui está proposto, uma alternativa para o sucesso das suas demandas perante o Supremo Tribunal Federal.

É o nosso Parecer, em Porto Alegre, aos 14 de setembro de 2005.




Dr. Eduardo Dutra Aydos
Advogado: OAB-RS nº 9.133
Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Coordenador-Executivo do Curso de Especialização em Direito, Economia e Democracia Constitucional – PPGD-UFRGS




[1] “Desde 15 de julho de 2004, quando começou, a campanha já recolheu 443 mil armas de fogo, mais de cinco vezes a meta inicial (80 mil armas)”. Zero Hora, Porto Alegre, 03/09/2005.
[2] Nas vertentes contemporâneas do pensamento de esquerda, uma das contextualizações mais rigorosas e conseqüentes de Justiça e Paz pode ser encontrada no pensamento da mais reconhecida discípula de LUKACS: ”Kant disse uma vez que a  paz é o supremo bem político. Eu diria que a paz é o supremo bem inferido. Paz, é o supremo bem político porque é inferida da igual liberdade e iguais oportunidades de vida para todos, onde “todos” tanto quer dizer “cada Estado soberano” quanto “cada cidadão”. Tomando o mundo como ele é, a idéia de guerra justa precisa ter prioridade temporal sobre a idéia de “paz eterna”, mesmo se a idéia de “paz eterna”, ao nível dos valores, precisa ter prioridade absoluta sobre a idéia de “guerra justa”. Assim, os princípios de guerra justa precisam ter idéias constitutivas – mas idéias consideradas temporais. Lutar apenas guerras justas é o primeiro, e o passo necessário na direção de um mundo de paz baseado na igualdade de liberdade e igualdade de oportunidade de vida”. (HELLER, Agnes: Além da Justiça. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, p. 286/287.)
[3] É também irrelevante, como justificativa para a antecipação da consulta referendária, a proibição que incide sobre a comercialização de munições. Se o efeito pretendido pelo referendo é exaurir o seu estoque em mãos da população civil, bem se vê que não será atingido no período de um ano. Dado que o respectivo consumo é de mera reposição, tal esgotamento projeta-se ao longo do tempo na dependência de fatores variáveis, e que pouco serão afetados pelo adiamento de um ano na respectiva proibição.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel: Nova Era do Processo Civil, São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 60.
[5] DINAMARCO, op. cit. P. 61.
[6] CRIMINALIDADE NO BRASIL, DIAGNÓSTICO E CUSTOS. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Formação de Pessoal em Segurança Pública. Disponibilizado em http://www.mj.gov.br/noticias/2003/junho/Criminalidade%20Dados %20Senasp.ppt.

[7] Ministério da Saúde – MS. Secretaria de Vigilância em Saúde – SVS. IMPACTO DA CAMPANHA DO DESARMAMENTO NO ÍNDICE NACIONAL DE MORTALIDADE POR ARMA DE FOGO. Brasília – Agosto de 2005.
[8] Desnecessário aprofundar essa polêmica, mas é importante registrar que estudos de séries temporais e análises multivariadas de alta sofisticação, comparativos dos efeitos da política de liberação do porte de armas nos Estados Unidos, realizados desde 1997 pelos professores John Lott e David Mustard, encontraram correlações positivas com a diminuição da criminalidade e das mortes por arma de fogo. A posição destes autores é contestada em livro publicado recentemente pela Brookings Corporation: Evaluating Gun Policy, em capítulo escrito por JOHN J. DONOHUE, intitulado The Impact of Concealed-Carry Laws, mas a contradita de David Mustard e  os comentários de um tertius, Willard Manning, igualmente reproduzidos na obra, não permitem o puro e simples descarte das conclusões de Lott e Mustard. Note-se que Lott e Miustard não somente demonstram que lares armados defendem a população de assaltos, mas que o maior índice de portes e circulação de armas é inibidor da criminalidade armada.
[9]
[10] Os casos do Canadá e da Austrália foram recentemente citados, ao lado da cidade de Bogotá e da África do Sul, como exemplos bem sucedidos das políticas desarmamentistas: verbis – Isso guarda estreita relação com experiências de outros países ou cidades do mundo, como Bogotá, Canadá, África do Sul, Austrália, etc. que implementaram estratégias de desarmamento e conseqüentemente tiveram níveis de violência reduzidos ou controlados.” (UNESCO, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde: Vidas poupadas. Relatório de pesquisa publicado no site oficial do Ministério da Justiça, setembro de 2005.)


[11] MAUSER, Gary A: op. cit. p. 14.
[12] MAUSER, Gary A: op. cit. p. 12
[13] MAUSER, Gary A: op. cit. p. 14.
[14] MAUSER, Gary A: The Failed Experiment. Gun Control and Public Safety in Canada, Australia, England and Wales. PUBLIC POLICY SOURCES. A FRASER INSTITUTE OCCASIONAL PAPER. Number 71 / November 2003.

[15] Informações coletadas no site que integra a página da Fundação Viva Rio: www.desarmamento.org
[16] DREYFUS, Pablo e NASCIMENTO, Marcelo de Sousa: Posse de armas de fogo no Brasil: mapeamento das armas e seus proprietários. Relatório de pesquisa: Projeto controle de armas de fogo do Viva Rio/ISER, publicado em “Brasil: as armas e as vítimas”, disponível em www.desarmamento.org., p. 160.
[17] As informações aceitas pela ANPCA – Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas, que lidera a campanha contra o desarmamento, contesta esses números: verbis – Sabendo-se que existem menos de 2 milhões de proprietários de armas legais no país, teremos a média de 5% dos lares armados. O Brasil é um dos países menos armados do mundo e o mais desarmado da América Latina. Mesmo supondo-se a existência de 4 milhões de armas ilegais, essa percentagem sobe para 15%, o que coloca o Brasil abaixo da média dos países europeus que apresentam muito menor taxa de criminalidade. Desses números concluímos que o Brasil não tem um problema de armas, mas sim de BANDITISMO” Confira-se: “Percentagem dos lares com armas em diversos países: (Fonte: Pacific Research Institute - 1991)
1) EUA - 48% dos lares
5) Finlândia - 25,5% dos lares
2) Suíça - 32,6% dos lares
6) França - 24,7% dos lares
3) Noruega - 31,2 dos lares
7) Austrália - 20,1% dos lares
4) Canadá - 30,8% dos lares
8) Bélgica - 16,8% dos lares
Texto e dados citados de: ANPCA, Notícias, Fatos e Dados I, apud: www.anpca.org.br.
[18] DREYFUS, Pablo e NASCIMENTO, Marcelo de Sousa: op. cit., p.186.
[19] Proporção das 9.146 armas vendidas a civis em 2003, que teriam sua venda proibida pelo referendo de outubro de 2005, sobre o estoque de 8.518.084 armas legais, calculado pelo projeto do VivaRIo/ISER.

[21] Proporção das 9.146 armas vendidas em 2003, que teriam sua venda proibida pelo referendo de outubro de 2005, sobre o estoque de 17.010.941 armas existentes no Brasil, calculado pelo projeto do VivaRIo/ISER.
[22] Deve ser, aqui, desconsiderado o impacto da proibição sobre a venda de munições, eis que os respectivos estoques, já em mãos desta categoria de cidadãos, que deles necessita para a sua exclusiva e legítima defesa, possuem duração estendida. Eventualmente, se deterioram pelo tempo, mais do que pelo uso nas necessidades precípuas da auto-defesa. 
[23] "Hoje é um momento de grande alegria. Estamos vendo o sucesso de uma política pública bem pensada, bem estruturada, que contou com a mobilização de toda a sociedade brasileira para poupar milhares de vidas", afirmou Thomaz Bastos. "As maiores quedas nos índices de homicídios de 2003 para 2004 ocorreram nos estados que mais recolheram armas, nos estados onde a nossa Campanha foi mais bem sucedida. (...) A SVS realizou a pesquisa cruzando dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Sistema Único de Saúde (SUS), com o número de armas recolhidas durante a Campanha do Desarmamento - registrado no Ministério da Justiça.” Fonte: site oficial do Ministério da Justiça – www.mj.gov.br/ noticias/2005/setembro/rls0e0905desarme.htm
[24] Cfr. Zero Hora, Porto Alegre, 03/09/2005, p. 34.
[25] O relatório técnico divulgado pela Secretaria da Vigilância em Saúde, não contempla o alegado cruzamento de dados – técnica estatística elementar - entre as quedas na mortalidade e o número de armas recolhidos por Estado. Se foram consistidas essas informações, seu resultado não foi divulgado e nem as próprias conclusões técnicas do relatório, de tosca elaboração estatística, autorizam a inferência ministerial: verbis – “O número de óbitos caiu em 18 estados. Mesmo nos que ocorreram crescimento da taxa de mortalidade, foi em menor escala do que nos anos anteriores. Isso indica um possível impacto do Estatuto do Desarmamento e do recolhimento de armas na mortalidade por arma de fogo no Brasil.” (Ministério da Saúde – MS. Secretaria de Vigilância em Saúde – SVS. IMPACTO DA CAMPANHA DO DESARMAMENTO NO ÍNDICE NACIONAL DE MORTALIDADE POR ARMA DE FOGO. Brasília – Agosto de 2005)
[26] Dados oficiais, SSP-SP, fonte: www.seguranca.sp.gov/estatisticas.

[27] Mais contaminado pelo “bias” desarmamentista, ainda, é o estudo conjunto da UNESCO, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde, onde o cálculo das “vidas poupadas” pelos supostos acertos da política oficial, é “amplificado” como resultado da redução das ocorrências registradas nas estatísticas oficiais em relação a um número projetado sobre o comportamento esperado da curva ascensional da taxa de mortes por arma de fogo. Como resultado disso, o ponto de flexão na curva ascensional da taxa de mortalidade é, convenientemente jogado, desde o primeiro semestre de 2003, para o segundo quando começa a “Campanha do Desarmamento Voluntário” e se torna bem mais acentuada. Até por isso, os autores deste relatório, não escondem a intencionalidade subjacente à produção enviesada de pesquisa meramente confirmatória do resultado que pretenderam alcançar: verbis – “Pela Tabela 1, é possível verificar que em 2004 aconteceu, em território brasileiro, um total de 36.119 mortes causadas por armas de fogo. Esse número já é significativamente inferior ao registrado no ano de 2003, quando foram relacionadas 39.325 mortes pelas mesmas causas, isto é, um número 8,2% menor. O único fato significativo que permite explicar essa queda, depois de anos a fio de incrementos constantes, é o Estatuto do Desarmamento e a posterior coleta gratificada de um grande número de armas em circulação.” Com efeito, simplesmente, não poderiam chegar a conclusão diversa, eis que não levaram em conta no referido estudo, nenhum outro fator possível de causar, no período sob análise, o fenômeno observado. (UNESCO, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde: Vidas poupadas. Relatório de pesquisa publicado no site oficial do Ministério da Justiça, setembro de 2005.)

[28] Não significa isso, entretanto, que as próprias classes economicamente mais abastadas possam descansar sobre os prospectos dessa concessão discriminatória. São argutas e incisivas, neste particular, as observações do filósofo Olavo de Carvalho em artigo publicado à época em que tramitava o projeto de lei do Estatuto do Desarmamento: “Essa mudança pode-se enunciar da maneira mais simples: aprovada a nova lei, haverá uma nova sociedade no Brasil, com novos dominadores e novos dominados. O mais rico dos brasileiros poderá contratar um segurança, mas não se defender dele se ele decidir, de repente, passar para o lado dos seqüestradores. O dinheiro será impotente, o prestígio será indefeso, a autoridade moral se tornará o discurso risivelmente inofensivo dos profetas desarmados: o único meio de acesso ao poder será ingressar na polícia, nas Forças Armadas ou numa quadrilha de traficantes. E a nova classe dominante não terá somente o monopólio dos meios de matar, mas também o da seleção de seus próprios membros: quem aceita ou rejeita um candidato a policial é a polícia; um candidato a quadrilheiro, a quadrilha. Por sua constituição mesma como monopolista (e monopolista da única força decisiva), a classe dos novos senhores será mais fechada, mais exclusivista e mais corporativista do que todas as suas antecessoras. E, o que é infinitamente mais grave, não haverá entre quem tem e quem não tem poder os graus intermediários que hoje matizam as diferenças hierárquicas: ao contrário do que acontece com o dinheiro, o poder político e a fama, que podem vir em quantidades maiores ou menores, entre o armado e o desarmado nenhum meio-termo é concebível.”
[29] Vide nota 1. Agregue-se aqui a estimativa, segundo a qual,  apenas 1% dos crimes de lavagem de dinheiro, que realimentam o síndrome dessa criminalidade/impunidade, são elucidados, conforme publicado em Zero Hora, Porto Alegre, 08/092005: “APENAS 1% DOS CRIMES É ELUCIDADO”. Por Alexandre Elmi.
[30] É o caso do líder máximo da revolução comunista em Rússia: “Imagine que o automóvel em que você está viajando é detido por bandidos armados. Você lhes dá o dinheiro, a carteira de identidade, o revolver e o automóvel; mas em troca disso escapa da agradável companhia dos bandidos. Trata-se, evidentemente, de um compromisso. Do ut des ( meu dinheiro, minhas armas e meu automóvel, apossibilidade de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é , ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos (ainda que esses, possuindo o automóvel e as armas, possam utiliza-los para novas pilhagens). LÊNIN, V.I. . A doença infantil do esquerdismo no comunismo. Rio de Janeiro, Editorial Vitória Ltda. 1960, p.31.) – Pois o leninismo tardio é capaz de assumir esse ponto de vista e construir política pública sobre esse denuncismo. É quando, parafraseando o mesmo LENIN precisamos aprender, e rapidamente, a distinguir, entre os que pregam a entrega das nossa bolsa e armas aos bandidos, na ingênua expectativa que, assim, genericamente procedendo vamos diminuir o impacto fatal da sua violência, daqueles que nos pregam esse comportamento para participar da divisão do saque. Dadas as circunstâncias em que essa proposta vem sendo veiculada, não parece difícil distinguir o que está em jogo no referendo do desarmamento.
[31] ARQUIVO: FOLHA  DE SÃO PAULO. Agosto 2005. Edição 27.885 Domingo, 07/08/2005 Tiragem 427,441. BRASIL “Votações coincidem com dias de saques. 07/08/2005. Autor: MARCELO SALINAS. Origem do texto: DA REDAÇÃO. Editoria: BRASIL Página: A12. Edição: São Paulo Aug 7, 2005. Cruzamento aponta que maiores retiradas das contas do publicitário em 2003 ocorreram em época de aprovação de reformas. Votações coincidem com dias de saques. MARCELO SALINAS. DA REDAÇÃO
O cruzamento entre os maiores saques das contas do publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza divulgados até agora e as principais vitórias do governo Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso revela uma coincidência que pode indicar a existência do "mensalão", o pagamento de mesada a parlamentares em troca de apoio em votações na Câmara. A aprovação das reformas tributária e da Previdência, que interessavam diretamente ao governo, ocorreram nos meses com o maior volume de saques das contas das empresas das quais Marcos Valério é sócio em 2003. O levantamento foi feito pela Folha com base na lista de retiradas identificadas até agora pela CPI dos Correios e na conexão partidária dos sacadores. Os dados foram cruzados com os principais fatos políticos que aconteceram no governo Lula de 14 de janeiro de 2003, dia da primeira retirada, até a data da última, em 1º de outubro de
2004.”

[32] “Uma pista para a resposta desta pergunta pode ser encontrada na afirmação do ex-ministro Miguel Reale Júnior em artigo na Folha de São Paulo: "O Brasil exporta aos EUA considerável número de revólveres, e o nosso produto ocupa parcela significativa do mercado. Os EUA exportam numero bem reduzido de armas para o Brasil. No entanto, se for proibida a comercialização e, logo, a importação, em face da reciprocidade, podem as fábricas americanas exigir que seja proibida também a importação pelos EUA, voltando as empresas americanas a ocupar o mercado perdido”. Talvez essa disputa de mercado explique porque algumas ONGs brasileiras, sabidamente subsidiadas por organizações internacionais, insistam tanto em proibir a fabricação e comercialização de armas no Brasil. É sabido que, impondo restrições à venda de armas no Brasil, a escala das indústrias é afetada, deixando-as sem competividade no mercado externo, além da provável exigência da reciprocidade admitida acima pelo ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior.” (Falsa Relação entre Armas Legais e Crime. Taurusnews, 19/07/2003. http://www.acordacidadao.hpg.ig.com.br/falsa_relacao_0001.htm. )
[33] O Estatuto do Desarmamento enfrentou seu momento mais crítico de votação, na  Câmara Federal, em data de 23/10/2003, e teve sua redação final aprovada no Senado Federal, em 09/12/2003: “A movimentação financeira foi revelada por relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, do Ministério da Fazenda), que apurou saques, em espécie, de R$ 20,9 milhões das contas das duas agências entre 2003 e 2005. Em 18 meses, foram feitos 103 saques. (05/07/2005. Origem do texto: DA SUCURSAL DE BRASÍLIA. Editoria: BRASIL Página: A9. Edição: São Paulo Jul. 5, 2005. Vinheta/Chapéu: ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/NOVAS LIGAÇÕES. PFL quer apurar o elo entre saques e votações.)
[34] Importante sinalizar que a concreção destes princípios gerais está contida nos incisos do art. 5º CF, cuja enumeração o entendimento dominante no STF considera não-exaustiva.
[35] Antônio Fragoso, Domingos Barbé, Helder Câmara, Mário C. de Jesus, João Breno,. Lepargneur, A. Kunz e Cardeal Arns (apresentador): A Força da Não-Violência. A FIRMEZA PERMANENTE. São Paulo, Coedição Loyola-Veja, 1977, p.31.
[36] Circunstancialmente, e sem pretender disso inferir uma relação de causa e efeito, no espaço e no tempo, é de registrar-se que o Governo inglês é um dos principais financiadores do projeto de desarmamento da Fundação Viva Rio.