Mente de predador
Fernando Malheiros Filho
Não, não estou sugerindo que passemos a dilacerar os adversários com as garras e dentes, até porque se trataria de atitude instintual, justamente o contrário do raciocínio que pretendo desenvolver. Refiro-me ao comportamento de muitos dos principiantes na prática da arte marcial, notadamente o Karate-Dō que tenho a honra de lecionar.
Percebi, ao longo dos anos, que a maior dificuldade para o desenvolvimento útil dos movimentos no praticante – mesmo os mais avançados – é a contenção (contratura) quando da execução do ato de golpear, que não aparece quando os mesmos praticantes são chamados a executar outros atos não “agressivos”, como entregar a mão para um cumprimento ou apanhar um objeto qualquer.
É difícil explicar para o cérebro que golpear (em todos os sentidos que se possa emprestar à palavra e ao gesto) deve estar impregnado da mesma simplicidade e naturalidade. O gesto deve ser genuíno e espontâneo como os demais que praticamos diariamente no curso da vida, e não com o esforço redobrado e, por vezes estafante, do exercício condicionado.
Disso resulta que o gestual marcial, para os praticantes que se iniciam na arte, e mesmo para a maioria dos mais endurecidos pelo treinamento, aparenta rigidez, artificialismo, forçamento e, pincipalmente, ineficiência.
Pus-me a pensar sobre a origem dessa maneira de agir e logo encontrei as diretrizes educacionais de contenção à agressividade, pelo menos física, a impregnar no genoma humano – no quanto a cultura é realmente capaz de fazê-lo – esse comportamento contido, uma das matrizes mais significativas da hipocrisia.
É certo que não poderíamos seguir nos matando (embora a matança continue) e deveríamos dar cobro à guerra como solução para os conflitos, mas esse esforço civilizatório – ainda sem resultado, como se sabe – não poderia explicar todo o comportamento que percebi nos iniciantes.
Ocorreu-me que deveríamos dispor, em nossos mais profundos extratos genéticos, formas de agir que nos foram impostas pela evolução; esse magnetismo darwiniano que nos conduz a partir das circunstâncias ambientais. Como sabemos – pelo menos a parte da humanidade que crê na ciência –, descendemos dos símios e, provavelmente, de símios de pequeno porte, tão intensamente ainda experimentamos as sensações da presa ante o predador. Inúmeros são os mecanismos que residem em nós, verdadeiros fósseis evolutivos, que relembram situações letais e a reação possível ante elas.
A presa não tem técnica; faz o que pode para não se transformar em alimento do predador. Foge desesperadamente, tem o cérebro inundado de hormônios (especialmente adrenalina), para movimentar a máquina ósseo-muscular na tentativa de sobreviver, frequentemente sem resultado quando o predador é hábil, rápido e feroz. A presa sobrevive pela quantidade de membros da espécie e não por sua habilidade em desfazer-se do predador; desespera-se, usando toda a energia disponível na fuga. Se não for apanhada, pode até morrer de exaustão.
Outra, muito diversa, é a atitude do predador: meticulosa, hábil, certeira, tecnicamente desenvolvida por gerações, uma máquina de matar. Sem sobressalto, faz apenas cumprir as regras que lhe foram ensinadas pelos que o antecederam, e pelos microscópicos caminhos dos genes. É rigorosamente eficiente.
Esse o diferencial a ser compreendido e, depois, posto em prática pelo iniciante e vivido intensamente pelo praticante maduro. Na execução de seu ato, o predador não dispõe em juízo moral sobre dilacerar sua presa; apenas o faz com a expertise que a evolução lhe concedeu. Valores são fruto da reflexão, do pensamento sofisticado e é justamente por isso que devemos nos debruçar sobre o comportamento individual em busca da verdade.
Essa verdade, que se persegue com o treinamento, vai sempre depender da pureza dos gestos em seu propósito técnico. É preciso limpar-lhes a sujeira evolutiva deixada por milhares de anos em que fomos presas indefesas. Agir como predador, mais do que tudo, significa buscar o gesto puro e imaculado pelas incertezas existenciais, e para isso é necessário plantá-los nos patamares mais profundos da natureza do ser: uma transformação, esse o propósito da prática continuada.
Assim como podemos criar o movimento limpo através do esforço e da determinação, também é possível produzir o pensamento puro, objetivo definitivo da arte de lutar.
É preciso desconfiar daqueles que pensam em lutar pela sobrevivência, como as pressas. Para esses tudo é justificável, afinal é a vida que estaria em jogo. Para o predador, apenas mais um refeição.
A vida é uma competição e só costuma premiar com a sobrevivência o primeiro lugar:
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🥋 Karatē-Dō e Karatē esportivo: um falso dilema 🥇
Fernando Malheiros Filho: https://docs.google.com/document/d/e/2PACX-1vSuexDyzS2PcBp-syTRkztRB5OzQ8_VGgwPgab57f2t-Hkt-9wSQTnhxiFUAmJcMdjAk67G8PBApD_5/pub