Sinal dos tempos

Sinal dos tempos  
Fernando Malheiros Filho


“Nem tudo é o que parece ser”, penso ter escrito alguma vez, aspirando o ineditismo. Todas as previsões viraram chacota. Na minha infância, o mundo futurista vinha do desenho animado (modelo de animação que também não existe mais, substituído pela computação gráfica) “Os Jetsons”. Meninos como eu se deliciavam ao ver o futuro pairando no ar. Era isso que se esperava do porvir: poderíamos voar!

Não parece necessária a inspiração psicanalítica para concluir que essa obsessão em voar referia-se à imaginação. Passados sessenta anos (pelo menos para mim), ainda estamos bem posados com os pés sobre a terra. Voamos mais o menos como voávamos naquele tempo: de avião.

Os sinais dos tempos, e rapidamente, vieram de fontes insuspeitas, que jamais imaginaríamos no passado nem tão remoto. Imaginávamos que o futuro ocorreria nos ares e não no nível o mar. Não era compatível com a grandeza epopeica dos sonhos o prosaísmo, embora algum pragmatismo pudesse antever que não seria bem assim.

Chegamos a sonhar por aqui que os problemas urbanos poderiam ser solvidos com a caríssima construção do metrô, empregada em grandes cidades para desafogar o fluxo urbano a partir do Século XIX, sem imaginar que dispositivos de tecnologia retirariam pessoas e veículos das ruas, otimizando o transporte, permitindo o encontro, sem intermediários, entre aqueles que querem ser transportados, pagando pelo transporte, e aqueles que desejam executar o serviço.

Essa solução não trouxe apenas a racionalização do uso de veículos na superfície, desafogando as vias, mas também a relativização dos valores: mudou a métrica para medi-los. Faz poucos dias, sendo transportado por solícito motorista de aplicativo, perguntei a ele qual o tipo de veículo que ele dirigia, ao que me foi respondido tratar-se de uma novidade baratinha da indústria automobilística, cujo nome já esqueci (algo como Arghhh). Fiz-lhe saber que, nos anos 1970, conhecia todos os modelos em circulação, e ainda sei, mas aqueles daquela época, se é que isso hoje pode ter alguma utilidade.

Aprendi, por conveniência, a ter meu veículo no bolso, ainda que não saiba a senha do cartão de crédito que leva meu nome – que foi digitada por minha mulher uma única vez no aplicativo de transporte. Nenhuma utilidade consigo encontrar em um veículo próprio, que apenas significa motivos para dores de cabeça.

Mas já foi diferente. O automóvel era extensão do corpo, e ter um vistoso carro significava bem mais do que simples meio de transporte. Tudo mudou em meia dúzia de décadas. Agora os jovens parecem estar desenvolvendo a mesma repelência que hoje – e já faz vários anos – manifesto pelo veículo particular. Não querem tê-lo: custa caro, dá trabalho mantê-lo, temos que estacioná-lo e pagar por isso. Não estão dispostos, como já estive, a trabalhar muitas horas mensalmente para dispor dessa propriedade evanescente. Como foi possível tudo mudar em tão pouco tempo?

Cresci ouvindo que o melhor investimento urbano eram as lojas. Melhor se de esquina, propiciando o encontro dos transeuntes com aquilo que não sabiam que desejam comprar. Tudo virou fumaça. As lojas vão sendo desocupadas paulatinamente, não encontrando outros lojistas a explorá-las. Já se vê tendência a transformarem-nas em aprazíveis residências: são amplas e bem situadas.

Tanto na calçada como no ascético ambiente dos Shoppings Centers, as lojas vão desaparecendo. Talvez ainda não por aqui, onde as tendências demoram trinta anos para chegar. Nos Estados Unidos, desde 2006, não se abre um novo shopping e centenas (dizem ser mais de 300) deles já fecharam as portas. O ambiente limpo, inodoro, e de temperatura estável garantida por potentes ares-condicionados, transformou-se em selvagens cenários de escombros, próprios a ratazanas e baratas. Quem poderia imaginar?

Sequer o conhecido hábito do “cineminha”, precedido ou complementado por mastigar fastfood na praça de alimentação parece não mais encantar. Nem mesmo as razoáveis livrarias que vizinhavam às salas de projeções conseguem sobreviver. Tudo pode ser feito no ambiente de rede, desde a compra do filme até a dos livros. A comida em casa é mais apetitosa e confortável, principalmente mais barata.

Seres humanos agem por seu próprio interesse, e perderam o interesse de ir aonde haverão de gastar o dinheiro que não têm para comprar o que não necessitam. O Shopping vai perdendo o encanto, como se estivéssemos no limiar da adolescência social, aprendendo que o mundo adulto é duro e áspero, impróprio para ludicidade do consumo inconsequente. Melhor não se deixar ludibriar pelo gozo fácil do produto tão luminoso e encantador como inútil.

É claro que conta para esse desfecho inevitável o mesmo instrumento que vai revolucionando os transportes: a rede. É possível, rapidamente e sem custo, sem sair da cama, ingressar em lojas virtuais e verificar os produtos e seus valores. De quebra ficamos menos (ainda que não muito) vulneráveis à compra por impulso: afinal será necessário realização de operação bancária, ver números de cartões, senhas, contas e outras especificações que nos dão tempo para refletir e interromper o ato de consumo das tantas inutilidades que nos são oferecidas.

Os tubarões (e como gostaria de ser um deles) também lucram, desde que suficientemente hábeis a perceber o tempo em que vivem. Venderão pela rede, concentrarão operações e locupletar-se-ão com a logística que o modelo exige. Regras do jogo.

É pelo menos mais democrático evitar o “efeito manada” – quando uns passam a repetir indefinidamente o que os outros fazem –, essa constante reafirmação da existência, tão pobre e curta como ela sabe ser.

Abandonamos os fálicos veículos, os estupefacientes Shoppings Centers e os hábitos noturnos. As baladas vão desaparecendo, as boates estão fechando as portas. Finalmente, a geração dos nascidos depois do ano 1982 até 2000 (os millennials) concluiu que o ambiente noturno é insalubre. Senão pelo impulso da repetição de costumes, esses ambientes sempre tiveram tudo para gerar a repulsa de que aos poucos vão sendo credores. Incêndios assassinos podem ter dado alguma contribuição para que constatemos a forma de arapucas daqueles fossos escuros e incrivelmente barulhentos, mas parece que a evolução da espécie é a principal responsável.

Seres humanos gostam de se encontrar e necessitavam de veículos para que isso acontecesse. De quebra, a anestesia do barulho, falta de luz, álcool, drogas e inibição olfativa, parecia ser ingrediente apetitoso para o frequentador ainda inibido pelas interdições religiosas e culturais.

Nada disso parece importar no ambiente em rede. Sendo possível encontrar de outra forma aquilo que se procurava nos ambientes esfumados das casas noturnas, qual a razão remanescente para frequentá-las? Nenhuma. E vão desaparecendo.

Sempre nutri má vontade com esse tipo de ambiente, que frequentei em oportunidades tão longínquas que já se perdem na memória. Lamento apenas sentir-me, naquele tempo, ultrapassado, démodée, quando poderia defender minha impertinência invocando estar à frente de meu tempo: ser visionário e incompreendido, o que poderia garantir-me alcançar o mesmo objetivo perseguido pelos então ávidos frequentadores daquelas indizíveis cloacas: a tão ortodoxa, como antiquada, busca à disponibilidade do sexo oposto.

Tarde demais. As razões que me faziam repelir enfaticamente as casas noturnas de meu tempo não são mais as mesmas que atualmente invoco para desprezá-las: hoje resta-me apenas o enfado!

Todo esse movimento bem poderia ser aplaudido como lídima manifestação da evolução civilizatória, mas também não é bem assim. Os mesmos que não querem saber de carros, shoppings e casas noturnas, fizeram-se hedonistas e imediatistas. Têm a alma tatuada pela instantaneidade das relações em rede. Não têm apego ao esforço (e ao estudo), e imaginam que seus problemas haverão de ser solucionados por desconhecida força cibernética, a mesma que lhes oferece a satisfação imediata pela virtualidade das imagens na tela do computador. Talvez tenham razão, o mínimo talvez lhes seja assegurado no futuro, mas o preço para isso haverão de pagar.

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