Raízes do antiintelectualismo
Fernando Malheiros Filho
27 de maio de 2019
Para a surpresa alguns, teorias de compreensão
da fenomenologia circundante deixaram o sepulcro eterno e voltaram ao mundo dos
vivos. Há para todos os gostos: a teoria globalista da conspiração, o terra-planismo,
o repúdio às vacinas, o criacionismo, o geocentrismo. Todas elas, sem exceção,
chocam-se com as evidências, mas encontram fiéis e numerosos seguidores, ainda
que algumas possam custar a vida que quem as professa (já há casos de mortes
daqueles que deveriam se vacinar, mas deixaram de fazê-lo).
Como entender esse complexo fenômeno,
quando a civilização parecia andar firme e amparada pela ciência, nesses tempos
em que as constatações científicas são tão abundantes e acessíveis a todos,
como igualmente copiosas as vantagens para o ser humano?
Em parte, a desconfiança que alimenta
às soluções místicas deriva das contramarchas da própria ciência. O sistema de
investigação da realidade não está imune à contradição dos postulados erigidos nas
percepções não totalmente comprovadas, mas aceitas por longo período. Na a
saúde humana essas contramarchas são frequentes. O cigarro já foi reconhecido
como bálsamo para várias enfermidades, enquanto demonizava-se a gordura animal,
ambos postulados vencidos pela investigação mais recente. Assim, várias
percepções que vieram se modificando com tempo. É clássica a compreensão
astronômica que partiu do geocentrismo, chegou ao heliocentrismo para depois
descobrir-se que não era nada disso. Não passamos, no concerto cósmico, de infinitesimal
e desimportante grão de poeira, como hoje se sabe.
Essas constantes alterações no cenário
científico traem a percepção humana, que exige certeza onde não é possível encontrá-la.
É difícil conviver com ideia de que o tudo veio do nada e que para o nada voltará,
ainda que as grandezas cósmicas, de tempo e espaço, em comparação do tempo da
vida humana, transformem essas constatações em mera curiosidade, não fosse a
angústia que causam nos espíritos mais sensíveis; a maioria dos pensantes.
Esses fenômenos, no entanto, não
explicam o ressurgimento do antiintelectualismo, ainda mais nessa era de
completo domínio da tecnologia sobre a vida de todos. Os avanços tecnológicos
na comunicação servem à divulgação das ideias esotéricas, justamente aquelas
que colidem com as evidências produzidas pelo mesmo desenvolvimento que
permitiu a instantânea divulgação em rede de todos os exotismos disponíveis.
Ainda que o ser humano alimente
irreprimível atração pelo esoterismo, subproduto do sistema racional e do
impulso de entender tudo; ainda que a explicação seja mero, mas engenhoso,
invento, a ciência política e o andamento mesmo da política têm forte
influência nessa desconfiança.
O reino da mentira impregnou os
movimentos políticos, notadamente os de esquerda. Na Revolução Francesa (1789),
os ideais de igualdade, fraternidade e legalidade, foram traídos pelo período
de terror, que terminou com a decapitação de seu mais avultado prócer,
Robespierre (1794), remédio para que se evitassem as decapitações de todos.
Sobreveio o retorno à monarquia pelas mãos de Napoleão, ele próprio auto-entronizado
imperador (1804). Sorte dos franceses. Napoleão, entre as virtudes e os defeitos,
apesar do belicismo que instituiu, dotou a França dos elementos que a lavariam
à condição de farol do ocidente, no final do Século XIX, eleita Paris a capital
do mundo.
Mesma sorte não experimentaram os
alemães. No nazismo não se pode encontrar nada de bom, mas seu ocaso não se
deveu exclusivamente à maldade intrínseca de que era dotado. Regime ainda pior
sobreviveu, e fortalecido, na União Soviética do pós-guerra.
É desnecessário arrolar os horrores do
sovietismo; mas é interessante estudar sua vitória na propaganda. Mesmo a
denúncia de Kruschev (Nikita Serguêievitch Khrushchov), na reunião do partido
após a morte de Stalin (1953), que escandalizou os bem-pensantes que aderiram
ao ideário maluco, não abalou o sistema, que seguiu exibindo feitos enquanto
amassava àqueles que dizia proteger.
O sovietismo redeu frutos até que o
muro de Berlim desmoronou mercê de suas inconsistências (1989). O muro físico
desabou à força das picaretas que se voltaram contra sua existência; metaforicamente,
veio abaixo por si mesmo.
Mas a história não se deteve. Tão
imanente à natureza humana parece ser o sovietismo que seus filhotes sobrevivem
até a atualidade. Na China, com sua pitoresca e paradoxal união do comunismo
político com o capitalismo econômico; em Cuba e sua deletéria ideação.
Cuba multiplicou sua própria catástrofe.
Não bastassem os índices miseráveis de desenvolvimento social da ilha, mesmo
despovoada pela maciça fuga dos mais aptos, o modelo foi exportado para a
Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua, e teve ainda representantes no poder no
Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Peru. Quase sempre a triste ideologia
resultou em desastre, alguns dantescos, como na Venezuela e Nicarágua, outros
igualmente graves, mas superáveis, como no Brasil e Argentina.
Em todos o traço comum: o maltrato à
verdade, o uso absoluto da mentira. No caso de Cuba e Venezuela – os mais
escandalosos –, enquanto a elite dirigente locupleta-se da roubalheira generalizada,
da corrupção em todos os quadrantes do Estado, do tráfico de drogas, de armas,
de metais precisos, de alimentos e medicamentos à população faminta e doente,
dizem estar à serviço da mais nobre das causas: o bem-estar coletivo, o
desenvolvimento social, a igualdade.
Hoje se sabe, com absoluta certeza,
que Fidel Castro, até a morte, viveu como monarca absoluto. Era dono da ilha.
Tinha a seu dispor o iate particular e verdadeira frota de navios. Eram suas
casas majestosas e espalhadas em vários pontos da ilha. Dispunha de grande frota
de veículos Mercedes-Benz 500 (o mais caro da marca) blindados. Toda a família
era servida por enorme séquito de serviçais. As refeições eram preparadas por chefs fardados de branco, à la carte, cabendo a cada indivíduo
escolher seu prato, todos os dias. Cada um dos membros da família tinha sua
própria vaca leiteira, para atender o gosto pessoal, enquanto os víveres eram
extraídos abundantemente das hortas plantadas nas propriedades de Fidel. Mesmo
no “período especial”, após 1989, quando faltou tudo na ilha, jamais faltou
nada à opípara vida do líder cubano, sua família e ministros. Fidel recebia
valores de todas as origens, especialmente dos negócios que comandava, do
tráfico de drogas e outras atividades ilícitas, que depositava na conta do el jefe, a qual somente ele tinha acesso.
Com isso vivia regiamente. Chegou, em várias oportunidades, a emprestar ao “governo
cubano” (ele próprio) dinheiro de sua conta pessoal, estabelecendo,
capitalistamente, a remuneração do dinheiro: 10% ao ano.
Fidel ensinou o modus faciende aos líderes Chavistas que ainda dominam a desnutrida
Venezuela. Em troca da expertise cobrou as remessas diárias de petróleo
venezuelano (chegaram a 140 mil barris dia), que aos poucos vai findando mercê
do mesmo modelo, com a total depauperação da estatal petroleira (PDVSA), que
nesse ocaso não consegue extrair do solo e do mar nem uma quarta parte daquilo
que extraía nos tempos de alta eficiência que, sintomaticamente, encerraram-se
em 1999, quando Chávez chegou ao poder.
Na Venezuela reproduziu-se o modelo
cubano, especialmente no vezo das atividades ilícitas. Lá instalou-se, como em
Cuba com Fidel, o centro do tráfico latino-americano de drogas, atraindo não
somente os principais carteis mexicanos e colombianos, como também os
movimentos de pátina política que se financiam pela mesma prática (Hezbollah, FARCS,
ELN). A reunião dos militares venezuelanos para o tráfico de drogas ficou
conhecida como o “Cartel dos Sóis”, referência às insígnias do exército
nacional. Não sem razão os líderes chavistas são processados no exterior por
tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e outras malfeitorias graves.
Esses sistemas jamais vicejariam sem o
investimento em pesados mecanismos de repressão, cerceamento de direitos,
violência explícita, tortura, ameaças, prisões e execuções sumárias: cópia aperfeiçoada
e ajustada aos trópicos do sistema soviético sob Stalin.
Jamais esses líderes hesitaram em
sacrificar quem quer que fosse para se manter no poder. Desde a morte de Camilo
Cienfuegos – independente e carismático companheiro de Fidel em Sierra Mestra, vítima de preparado
acidente aeronáutico em outubro de 1959 – até a execução do general Ochoa, em
1989 – após processo sumário, quando as traficâncias de Fidel foram descobertas,
sendo necessário “executar os culpados” – somaram-se milhares de evidências.
Cubanos exilados depuseram sobre as práticas, de resto conhecidas, ainda que
parcamente divulgadas.
O problema é que esse aparato criminoso
contou com a cobertura intelectual. Por variadas razões, exércitos de escritores,
professores universitários, educadores de todo o tipo, saíram em defesa do
indefensável, e principalmente das mentiras necessárias à manutenção do modelo.
Demonstrada a absoluta inoperância
econômica do sistema comunista (e nem poderia de outra forma), desfraldaram-se
outras bandeiras igualmente mentirosas, passando pelo aquecimento global, o
sexismo, afronta ao conservadorismo, o ataque às instituições de combate ao crime,
a defesa dos mecanismos abertamente criminosos quando, aparentemente, defendem
causas políticas.
Elegeram-se os Krischner, Lula, Humala,
Morales, Lugo, Correa e, após os flagelos que produziram em seus respectivos
países, paulatinamente descobriu-se que mentiam sempre, em qualquer hipótese,
sobre tudo. Não havia nenhum teor de verdade naquilo que diziam e propagavam
como verdade absoluta. Era necessário mentir com convicção, e nisso, é
necessário reconhecer, foram insuperáveis.
E os intelectuais trataram de dar
cobertura a essa calamidade, ainda o fazendo nesses tempos estranhos não sem
algum constrangimento. Os intelectuais, ao sufragar a mentira, foram os
primeiros desacreditar o intelectualismo. Não admira que, perdendo a
credibilidade, sufocaram a própria voz. Esses, destinados aos escaninhos da
história, não farão falta.
Ler o texto acima, lembra-nos de Mario Ferreira dos Santos.
Mario Fereira dos Santos e Fernando Malheiros Filho estudaram na mesma Casa de André da Rocha, a Faculdade de Direito da UFRGS.
Compare com a obra " Invasão vertical dos barbaros"
Publicada em maio de 1967, inaugurando a coleção “Uma Nova Consciência”
Ainda sobre o tema:
Confira outras obras do
maior filósofo do Século XX
Nenhum comentário:
Postar um comentário